"Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.
Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais."
Multidões
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Refugo/020
"Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais.Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho.
Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria vida moral, que me são só apensos - desleixo a ideia do dever mas também a ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos entre as árvores da quinta de Ninguém."
Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho.
Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria vida moral, que me são só apensos - desleixo a ideia do dever mas também a ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos entre as árvores da quinta de Ninguém."
Anónimo
Refugo/019
"Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou progressivamente sobre a civilização. Dezassete séculos de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos de aspiração pagã perenemente postergada – o catolicismo que falira como cristismo, a renascença que falira como paganismo, a reforma que falira como fenómeno universal. O desastre de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto se conseguira, a miséria de viver sem vida digna que os outros pudessem ter connosco, e sem vida dos outros que pudéssemos dignamente ter.
Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à acção, por ter de ser vil numa sociedade vil, inundou os espíritos. A actividade superior da alma adoeceu; só a actividade inferior, porque mais vitalizada, não decaiu; inerte a outra, assumiu a regência do mundo.
Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do pensamento - o romantismo; e uma vida social feita dos elementos secundários da actividade - a democracia moderna.
As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas nascidas para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade introspectiva da própria alma. Chamamos "românticos", por igual, aos grandes que faliram e aos pequenos que se revelaram. Mas não há semelhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a sentimentalidade mostra a impossibilidade do uso activo da inteligência; em outros mostra a ausência da própria inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se distende com o vento do tempo; um Vigny é um génio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que teve de ser homem de génio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas tendências estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas por igual.
Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade.
J. J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou - ai dele e de nós! - as forças que o fizeram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava escrita, em baixo, a palavra "Derrota". No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de vencer, foram as coroas e os ceptros, a majestade de mandar e a glória de vencer por destino interno.
II
O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia e de violência - da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente, tanto na acção, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa.
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos."
Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à acção, por ter de ser vil numa sociedade vil, inundou os espíritos. A actividade superior da alma adoeceu; só a actividade inferior, porque mais vitalizada, não decaiu; inerte a outra, assumiu a regência do mundo.
Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do pensamento - o romantismo; e uma vida social feita dos elementos secundários da actividade - a democracia moderna.
As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas nascidas para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade introspectiva da própria alma. Chamamos "românticos", por igual, aos grandes que faliram e aos pequenos que se revelaram. Mas não há semelhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a sentimentalidade mostra a impossibilidade do uso activo da inteligência; em outros mostra a ausência da própria inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se distende com o vento do tempo; um Vigny é um génio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que teve de ser homem de génio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas tendências estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas por igual.
Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade.
J. J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou - ai dele e de nós! - as forças que o fizeram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava escrita, em baixo, a palavra "Derrota". No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de vencer, foram as coroas e os ceptros, a majestade de mandar e a glória de vencer por destino interno.
II
O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia e de violência - da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente, tanto na acção, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa.
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos."
Anónimo