Mostrar mensagens com a etiqueta Ânsia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ânsia. Mostrar todas as mensagens

Refugo/024

"A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra. 
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor. 
Meu destino é a decadência. 
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca  sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas."

Resto/474

"Viagem nunca feita III

– Naufrágios? Não, nunca tive nenhum. Mas tenho a impressão de que todas as minhas viagens naufraguei, estando a minha salvação escondida em inconsciências intervalantes.
– Sonhos vagos, luzes confusas, paisagens perplexas – eis o que me resta na alma de tanto que viajei.
Tenho a impressão de que conheci horas de todas as cores, amores de todos os sabores, ânsias de todos os tamanhos. Desmedi-me pela vida fora e nunca me bastei nem me sonhei bastando-me.
– Preciso explicar-lhe que viajei realmente. Mas tudo me sabe a constar-me que viajei, mas não vivi.
Levei de um lado para o outro, de norte para sul... de leste para oeste, o cansaço de ter tido um passado, o tédio de viver um presente, e o desassossego de ter que ter um futuro. Mas tanto me esforço que fico todo no presente, matando dentro de mim o passado e o futuro.
– Passeei pelas margens dos rios cujo nome me encontrei ignorando. Às mesas dos cafés de cidades visitadas descobri-me a perceber que tudo me sabia a sonho, a vago. Cheguei a ter às vezes a dúvida se
não continuava sentado à mesa da nossa casa antiga, imóvel e deslumbrado por sonhos! Não lhe posso afirmar que isso não aconteça, que eu não esteja lá agora ainda, que tudo isto, incluindo esta conversa consigo, não seja falso e suposto. O senhor quem é? Dá-se o fato ainda absurdo de não o poder explicar..."

Resto/468a

"Peristilo

Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa casa abandonada.
Colhi para escrevê-lo a alma de todas as flores, e dos momentos efémeros de todos os cantos de todas as aves, teci eternidade e estagnação. Tecedeira(...), sentei-me à janela da minha vida e esqueci que habitava e era, tecendo lençóis para o meu tédio amortalhar nas toalhas de linho casto para os altares do meu silêncio,(...)
E eu ofereço-te este livro porque sei que ele é belo e inútil. Nada ensina, nada faz crer, nada faz sentir. Regato que corre para um abismo-cinza que o vento espalha e nem fecunda nem é daninho(...)– pus toda a alma em fazê-lo, mas não pensei nele fazendo-o, mas só em mim que sou triste e em ti que não és ninguém.
E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu to dou... 
Reza por mim (a) lê-lo, abençoa-me de amá-lo e esquece-o como o Sol de hoje ao Sol de ontem (como eu esqueço aquelas mulheres nos sonhos que nunca soube sonhar).
Torre do Silêncio das minhas ânsias, que este livro seja o luar que te fez outra na noite do Mistério Antigo!
Rio de Imperfeição dolorida, que este livro seja o barco deixado ir por tuas águas abaixo para acabar mar que se sonhe.
Paisagem de Alheamento e de Abandono, que este livro seja teu como a tua Hora e se ilimite de ti como da Hora de púrpura falsa."

Resto/465

"O major
 
Nada há que tão intimamente revele, que tão completamente interprete a substância do meu infortúnio nato como o tipo de devaneio que, na verdade, mais acarinho, o bálsamo que com mais íntima frequência
escolho para a minha angústia de existir. O resumo da essência do que desejo é só isto: dormir a vida. Quero demais à vida, para que a possa desejar ida; quero demais a não viver para ter sobre a vida um anseio demasiado importuno.
Assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos. À noite, às vezes, com a casa quieta, porque os donos saíssem ou se calem, fecho as vidraças da minha janela, tapo-as com as pesadas portas; imerso num fato velho, aconchego-me na cadeira profunda e prendo-me no sonho de que sou um major reformado num hotel de província, à hora de depois de jantar, quando ele seja, com um ou
outro mais sóbrio, o conviva lento que ficou sem razão.
Suponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do major reformado, nem os postos militares por onde subiu até àquele meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o maior que me suponho não é
posterior a nenhuma vida que tivesse; não tem, nem teve parentes; existe eternamente àquele viver daquele hotel provinciano cansado já de conversas de anedotas que teve com os parceiros na demora."

Resto/462f

"Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe... O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar, se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor? 
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo, onde sem corpo tátil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse? 
Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já (se) não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja.
Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo."

Resto 345/a

" Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda que chamamos tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogénio e oxigénio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende - como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço - nenhuma destas coisas é o tédio; mas também não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas , pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é; deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do quer isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia."

Resto 311

"...
Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmeras de ser sempre o mesmo e outro.
Por degraus de sonhos e cansaços meus desce da tua irrealidade, desce e vem substituir o mundo."

Resto 224

" Não posso ler, porque a minha crítica hiperacesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela, ou há-de morrer às mãos dela ou secar...
Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade."