" Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda que chamamos tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogénio e oxigénio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende - como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço - nenhuma destas coisas é o tédio; mas também não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas , pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é; deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do quer isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia."