Resto/458a

"Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera
 
Hoje, mais demorada do que nunca, veio a Morte vender ao meu limiar. Diante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação.
Sorria deles, por elogio, e não se importando que eu a visse. Mas quando eu me tentava por comprar, falou-me que não os vendia. Não viera para que eu quisesse o que me mostrava mas para que, por o que
mostrava, a quisesse a ela. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que se gozavam no seu palácio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu castelo na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retábulos da sua estância para além do mundo.
O apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave o desligou. “O teu lar”, disse, “não tem lume: para que queres tu ter um lar?” “A tua casa ”, disse, “não tem pão: para que te serve a tua mesa?” “A tua vida”, disse, “não tem quem a acompanha: para que te seduz a tua vida?”
 
“Eu sou”, disse ela, “o lume das lareiras apagadas, o pão das mesas desertas, a companheira solícita dos solitários e dos incompreendidos. A glória, que falta no mundo, é pompa no meu negro domínio. No meu império o amor não cansa, porque sofra por ter; nem dói, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabelos dos que pensam, e eles esquecem; contra o meu seio se encostam os que em vão esperaram, e eles enfim confiam.”
 
“O amor, que me têm”, ela disse, “não tem paixão que consuma; ciúme que desvaire; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendigos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus lábios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das árvores e das fontes; mas o meu silêncio acolhe como uma música indecisa, o meu sossego afaga como o torpor de uma brisa.”