Resto/458b

" “Que tens tu”, ela disse, “que te ligue à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, a herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimando as suas primícias, e o sol ardido as suas promessas. Nunca viste, senão seco, o poço da tua quinta. Apodreceram, de antes de as veres, as folhas nos teus tanques. As ervas ruins cobriram as áleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram.”
“Mas no meu domínio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo terás o repouso, porque não terás a vida.”
E mostrou-me como era estéril a esperança de melhores dias, quando se não nascera com alma, em que os dias bons se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida dói mais quando se acorda. Mostrou-me como o sono não repousa, porque o habitam fantasmas, sombras das coisas, rastos dos gestos, embriões mortos dos desejos, despojos do naufrágio de viver.
E, assim dizendo, dobrava devagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde os meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retábulos, onde já as
minhas lágrimas caíam.
“Por que hás-de tentar ser como os outros, se estás condenado a ti? Para que hás-de rir, se, quando ris, a tua própria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esqueceres de quem és? Para que hás-de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lágrimas não te consolarem, que porque as lágrimas te consolem? "