Resto/476e

" Por isso conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda. Não há baixo impulso, como não há nobre intuito que me não tenha sido relâmpago na
alma; e eu sei com que gestos cada um se mostra. Sob as máscaras que as más ideias usam, de boas ou indiferentes, mesmo dentro de nós eu pelos gestos as conheço por quem são. Sei o que em nós se esforça por nos iludir. E assim à maioria das pessoas que vejo conheço melhor do que eles a si próprios. Aplico-me muitas vezes a sondá-los, porque assim os torno meus. Conquisto o psiquismo que explico, porque para mim sonhar é possuir. E assim se vê como é natural que eu, sonhador que sou, seja o analítico que me reconheço.
Entre as poucas coisas que às vezes me apraz ler, destaco, por isso, as peças de teatro. Todos os dias se passam peças em mim, e eu conheço a fundo como é que se projeta uma alma na projeção de Mercator, planamente. Entretenho-me pouco, aliás, com isto; tão constantes, vulgares e enormes são os erros dos dramaturgos. Nunca nenhum drama me contentou. Conhecendo a psicologia humana com uma nitidez de relâmpago, que sonda todos os recantos com um só olhar, a grosseira análise e construção dos dramatistas fere-me, e o pouco que leio neste género desgosta-me como um borrão de tinta atravessado na escrita."