Resto/462b

" A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.
 
Como não te sonhar? Como não te sonhar? Senhora das Horas que passam, Madona das águas estagnadas e das algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis – livra-me da minha mocidade.
Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa – livra-me da alegria e da felicidade.
Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono – faze com que eu seja odiado pelos homens e escarnecido pelas mulheres. 
Címbalo de Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo de horas passadas a sonhar – livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.
Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, silêncio entre prece e prece, enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem. 
Torna-me inútil e estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faze-me puro sem razão para o ser, e falso sem amor a sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas – ó Ladainha de Desassossegos, ó Missa-Roxa de Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão!...
Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer como a um homem, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu! "