Resto/469b

" Qualquer coisa em mim pede eternamente compaixão – e chora sobre si como sobre um deus morto, sem altares no culto, quando a vinda branca dos bárbaros moceou nas fronteiras e a vida veio pedir contas ao
império do que ele fizera da alegria.
Tenho sempre receio de que falem em mim. Falhei em tudo. Nada ousei sequer pensar em ser; pensar que o desejaria nem sequer o sonhei, porque no próprio sonho me conheci incompatível para a vida, até
no meu estado visionário de sonhador apenas.
Nem um sentimento levanta a minha cabeça do travesseiro onde a afundo por não poder com o corpo, nem com a ideia de que vivo, ou sequer com a ideia absoluta da vida.
Não falo a língua das realidades, e entre as coisas da vida cambaleio como um doente de longo leito que se ergue pela primeira vez. Só no leito me sinto na vida normal. Quando a febre chega agrada-me como
coisa natural (...) ao meu estado recumbente. Como uma chama ao vento tremo e estonteio-me. Só no ar morto dos quartos fechados respiro a normalidade da minha vida.
Nem uma saudade já me resta dos búzios à beira dos mares. Conformei-me com ter-me a minha alma por convento e eu não ser mais para mim do que outono sobre descampados secos, sem mais vida viva
do que um reflexo como de uma luz que finda na escuridão endosselada dos tanques, sem mais esforço e cor do que o esplendor violeta-exílio do fim do poente sobre os montes."