Resto 112/a

" A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
 Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vi? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só - o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana - o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios - todos da mesma água sororal e fresca; os mares, as montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza;os campos as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras e os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo...Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims,os calções zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os Montes?Estas coisas são acidentes da superfície;podem sentir-se com o andar mas não com o sentir.O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana"