Resto 306/b

" Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.
A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exactidão inscrita num livro irónico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.
Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.
Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das parede. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, orfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino."

Resto 306/a

" Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e ma falam, ou todos os dias ou por acaso.
Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como directamente realidades físicas;vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós.
Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que vêem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. É precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse actor prolongado do cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim."

Resto 305

" O que tenho sobretudo é cansaço,e aquele desassossego que é gémeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo e parece antecipadamente fruste.
O insuportável tédio de todas estas caras,alvares de inteligência ou de falta dela, grotesca até à náusea de felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas que me são alheias..."

Resto 304

"Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efectivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos de compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim."

Resto 303

"Sentir é uma maçada. Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória.
A própria forma plebeia da frase lhe dá sal e pimenta."

Resto 302/b

" Quando,depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca verejeira,(aquele vago zumbido que não era do escritório) poisada no tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anónimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que poisa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, directamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. senti-me mosca quando supus que me senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente,quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia."

Resto 302/a

" Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento, pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti-me imediatamente a inutilidade da vida. Ver,sentir,lembrar,esquecer - tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo."

Resto 301

" Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio;todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados."

Resto 300

" ...O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos...
Vi depressa que o que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da razão."

Resto 299/b

" Doi-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez surgida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás do cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espectáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo o que está próxima porém não me ofendeu.
O meu desejo é morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói  a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim,que, se eu passar as mão pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer."

Resto 299/a

" Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequência de uma coisa material chamado cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crâneo. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama aquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida uma relação visual, direi - entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relção de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais órdinária incomodar a que o é menos."

Resto 298

" Que acto humano tem uma cor tão bela como os actos espúrios - que mentem á sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?
Sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obra que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.
Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela,daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá)...
Que bela é a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolonga, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser - o absurdo, meu amor, o absurdo.


E eu que digo isto - porque escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,...- eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.


E quando a mentira comece a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos cause angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer..."

Resto 297

" Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outro? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas a voz que está dentro de si.
As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágio do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intensão de dar sentido profundo.
A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio - ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós  e fantasias tudo cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!"

Resto 296

"Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse der muitíssimo mais.
Ai do artista que repara isto! que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.
E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.
Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!
Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!


De quão complexas inintenligências não é feita a compreensão dos outros de nós.


A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer ver compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender - esses nunca têm o desejo de serem compreendidos."

Resto 295

"Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade."

Resto 294

"De resto eu não sonho, eu não vivo; sonho a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante acção, nunca desaparecem o... do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetrável e inexpugnávelmente nosso.
O universo, a Vida - seja isso real ou ilusão - é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo - ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é...
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ter eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o vêem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos."

Resto 293

"Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia da nossa íntima descrença."

Resto 292

"Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentidos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas e abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde."

Resto 291

" ...a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe, um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. a voz do patrão Vasques soou alta..."

Resto 290/c

" A academia vegetal dos silêncios... teu nome soando como as papoilas...os tanques...o meu regresso...o padre louco que endoideceu na missa...Estas recordações são dos meus sonhos...Não fecho os olhos, mas não vejo nada...Não estão aqui as coisas que vejo...Águas...


Numa confusão de emaranhamento, o verdor das árvores é parte do meu sangue. Bate-me a vida no coração distante...Eu não fui destinado à realidade, e a vida quis vir ter comigo.


A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma!...
Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de dar passos não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro."

Resto 290/b

"Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção.
Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.
Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por isso mesmo me abstive de o tentar. A ideia de que o que eu fazia pudesse ser aproveitável magoou-me, secou-me para mim.
Tenhos quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha Acção entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma vela longínqua.
Os dias de sol sabem-me ao que eu tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta - éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos...Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos."

Resto 290/a

" Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo espiritual.Todo o gesto é um acto revolucionário; um exílio, talvez, da verdadeira...dos nossos propósitos.
A acção é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a acção é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isso; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar se não pelo martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.
As sombras rotas das folhagens, o canto trémulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoilas, e a simplicidade das sensações - ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo o não sentisse.
As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando, pelas sombras dos meus sentimentos. se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas ardem-me do espectáculo do mundo."

Resto 289

" A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a aportunidade é episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu,não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.
Ter ocasião de... Nesse campo de disporá a estátua da renúncia.
Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.


O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respirção do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificiência triste das penumbras."

Resto 288*

" Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço,começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência da substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas;era, não já um torpor, mas um tédio,em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam.
A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas.Nada ia ainda morrer, mas tudo, como num sorriso que ainda faltava, se se virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento: soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descoloria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálperas, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro, lavavam estas meias-tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastanto coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anónimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa que o frio do inverno trás de bom - verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços  já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se escrevo, é porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi."

Resto 287*/b

"Foi um mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza,e eu via-me nos lagos deles como Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segregada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era prelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata na execução estática duma grande acção militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos,quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim."

Resto 287/a

" Reconheço hoje que falhei;só pasmo,às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio.


As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.


Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio - o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou que um boémio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual,caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca,talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia,floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver."

Resto 286

"...,barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem."

Resto 285/c

"Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado,também existia!
...Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Agústias?  Sem dúvida... Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém...Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal,não é dele mas de um pensamento meu?
...Sim, os outros não existem...É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim..."

Resto 285/b

" Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E «carne e osso», de facto, as descreve bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costeletas do Destino.
Não me envergonho de sentir porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer."

Resto 285/a

"Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramática que no palco passam através dos actores que as figuram.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam connosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos eléctricos, ou nos roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem,e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida."

Resto 284

"Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as humilhções, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia desprezível da sensibilidade, ao recinto exterior da alma consciente.


Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer."

Resto 283

" Perder tempo comporta uma estética. Há, para os subtis nas sensações, um formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez. A estratégica com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irónica das subservivências à normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as instrusões da vida; um cuidado...deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com os outros."

Resto 282

" Desejaria construir um código de inércia para os superiores nas sociedades modernas.
A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si própria, se não contivesse gente de sensibilidade e de inteligência. Acreditem que é a única coisa que a prejudica.
Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade resultaria em eles morrerem, porque não sabem trabalhar. E talvez morressem de tédio, por não haver espaços de estupidez entre eles. Mas eu falo do ponto de vista da felicidade humana.
Cada superior que se manifestasse na sociedade seria expulso para a Ilha dos superiores. Os superiores seriam alimentados, como animais em jaula, pela sociedade normal.
Acreditem: se não houvesse gente inteigente que apontasse os vários mal-estares humanos, a humanidade não dava por eles. E as criaturas de sensibilidade fazem sofrer os outros por simpatia.
Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos superiores é reduzirem ao mínimo a sua participação na vida da tribo. Não ler jornais, ou lê-los só para saber o que de pouco importante e curioso se passa. Ninguém imagina a volúpia que arranco ao noticiário sucinto das províncias. Os meros nomes abrem-me portas sobre o vago.
O supremo estado honroso para um homem superior é não saber quem é o chefe de Estado do seu país, ou se vive sob monarquia ou sob república.
Toda a atitude deve ser colocar-se a alma de modo que a passagem das coisas, dos acontecimentos não o incomode. Se o não fizer terá que se interessar pelos outros, para cuidar de si próprio."

Resto 281

" Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de agústias para a sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem para por eles sem tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna - a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles ( ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isso, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!"

Resto 280

"Há dias em que cada pessoa que encontro,e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano,assumem aspectos de símbolos,e, ou isolados ou ligando-se,formam uma escrita profética ou oculta,descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente;a rua é um livro;as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para quem me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem,porém não é de si que falam,nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam.Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.
Passando às vezes na rua oiço trechos de conversas íntimas, e quase todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante daquele,...
Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades traseira do armazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão que é a minha vida."

Resto 279

"Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho  náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante. A náusea física directa, sentida directamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta... Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afectam-me como um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir sentir-los.
E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agonia. Não representante por uma emoção minha, subjectiva e pensada, mas por uma verdade objectiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro, que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso."

Resto 278

" A minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.


Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.


As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar).
Todos os gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhres-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. É toda ranger de asas, como dos..., a lagoa de eu te ver.


Chove,chove,chove...
Chove constantemente,gemedoramente,
Meu corpo treme-me a alma de frio...Não há um frio que há no espaço, mas um frio que há em ver a chuva...


Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz."

Resto 277

"O prazer de nos elogiarmos a nós próprios...


PAISAGEM DE CHUVA


Cheira-me a frio, a mágoa, a serem impossíveis todos os caminhos, a idei de todos os ideais.


As mulheres contemporâneas tais arranjos do seu porte e do seu vulto talham, que dão uma dolorosa impressão de efémeras e de insubstituíveis...
O mero voltear dum xaile para cima dos ombros usa hoje mais consciência à visão do gesto em quem o faz do antigamente. Dantes o xaile era parte do traje; hoje é um detalhe resultante de intuições de puro gozo estético.
Assim,neste nossos dias, tão vívidos através de fazerem tudo arte, tudo arranca pétalas ao consciente e se integra...em volubilidade de extático..."

Resto 276

" Já não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e equiescência espiritual.
Se a vida (não) nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos,desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.
Como sendo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou activar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer."

Resto 275/b

"Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios,diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é  senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvario do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que(m) não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir."

Resto 275/a

" Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã  e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas ocas, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. 
Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desololação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos nevegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas:nevegar é preciso, viver não é preciso."

Resto 274/c

"Assim, entre sonhos, e sem largar o meu devaneio ininterrupto,vou, não só vivendo-lhes a essência requintada das suas emoções às vezes mortas, mas compreendendo e classificando as lógicas interconexas das várias forças do seu espírito que jaziam às vezes num estado simples da sua alma.
E no meio disto tudo a sua fisionomia, o seu traje, os seus gestos, não me escapam. Vivo ao mesmo tempo os seus sonhos, a alma do instinto e o corpo e atitudes deles. Numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu crio e sou, a cada momento da conversa, uma multidão de seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos, que se reúnem em leque aberto."

Resto 274/b

"Cada outro é um canal ou uma calha por onde a água do meu ser corre a gosto dele, marcando,com as cintilações da água ao sol, o curso curvo da sua orientação mais realmente do que a secura deles o poderia fazer.
Parecendo às vezes, à minha análise rápida,parasitar os outros, na realidade o que acontece é que os obrigo a ser parasitas da minha posterior emoção. Habito com a vida as cascas da individualidade. Decalco as suas passadas em argila do meu espírito e assim mais do que eles, tomando-as para dentro da minha consciência, eu tenho dado os seus passos e andado nos seus caminhos.
Em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me, seguir ao mesmo tempo duas, diversas operações mentais eu, ao passo que me vou adaptando em excesso e lucidez ao sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido estado da alma deles, fazendo a análise puramente objectiva do que eles são e pensam."

Resto 274/a

" O meu hábito vital de descrença em tudo, especialmente no instintivo, e a minha atitude natural de insinceridade, são a negação de obstáculos a que eu faça isto constantemente.
No fundo o que acontece é que faço dos outros o meu sonho, dobrando-me às opiniões deles para, expandindo-as pelo meu raciocínio e a minha intuição, as tornar minhas e (eu, não tendo opinião,posso ter as deles como quaisquer outras) para as dobrar a meu gosto e fazer das suas personalidades coisas aparentadas com os meus sonhos.
De tal modo anteponho o sonho à vida que consigo, no trato verbal(outro não tenho), continuar sonhando, e persistir, através das opiniões alheias e dos sentimentos dos outros, na linha fluida da minha individualidade amorfa."

Resto 273

" A fé é o instinto da acção."

Resto 272/c

" Como o patrão Vasques são todos os homens de acção - chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade,joga, entretendo-se sempre contra si mesmo."

Resto 272/b

" Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias.Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inérte - ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é,pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é o homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo.Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mi lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer...
Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da acção; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade.Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir."

Resto 272/a

" O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser homem práctico é a ausência da sensibilidade. A qualidade principal na práctica da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção - a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir."

Resto 271

" Descobri que penso sempre,e atendo sempre, a duas coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco assim. Há certas impressões tão vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas impressões,creio, se formará uma parte - a parte interna, talvez - da dupla atenção de todos os homens. sucede comigo que têm igual relevo as duas realidades a que atendo. Nisto consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a minha tragédia, e a comédia dela.
Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e C.ª...Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo - quase mesmo ao pé de onde sinto que estou - sai o vulto do desconhecido. Vira-me as costas e avança para os outros. O seu modo de andar é lento e as ancas não dizem muito.É inglês....
Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança torna-se parte da minha história."

Resto 270

" A única maneira de teres sensações novas é construir-te uma alma nova. Baldado  esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos - há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? - e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.
Muda de alma. Como? Descobre-o tu.
Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.
Não descer nunca a fazer conferências, para que não se julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser, que nos leia.
De mais a mais o conferenciador semelha o actor - criatura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte."

Resto 268/b

"Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhando, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.
Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças."

Resto 268/a

" Cada vez que viajo, viajo imenso. O cansaço que trago comigo de uma viagem de comboio até Cascais é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.
Cada casa por que passo, cada chalé, cada casa casita isolada caiada de branco e de silêncio - em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto, que, tendo-a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades...Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo.Sou o pai, a mãe...várias sensações diversas, de viver ao mesmo tempo - e ao mesmo tempo por fora, vendo-as, e por dentro sentido-mas - as vidas de varias criaturas."

Resto 267

"Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta...
Um lê para saber, inultimente. Outro goza para viver, inutilmente.
Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas,vozes,letras.
...sigo, nos livros, a compatibilidade de tudo; mas não é só isto: vejo; para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios...Todo o mundo se me desenrola aos ohos só porque tenho diante de mim...
Toda a vida social jaz a meus olhos.
Para além disto pressinto os amores..."

Resto 266

" A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes.
Como o homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência e, a seu modo, fazem os gestos da vida."

Resto 265

"O dinheiro é belo, porque é uma libertação,...
Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a ideia dum cataclismo vindouro.
Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam - compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Todos os pequenos objectos inúteis cujo acenar ao saberem que têm dinheiro os faz comprá-los, possuem-nos na atitude feliz de uma criança que apanha conchinhas na praia - imagem que mais do que nenhuma dá toda a felicidade pueril. Apanha conchas na praia! Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas mais bonitas ne mão, e quando lhas perdem ou tiram - o crime! roubar-lhe bocados exteriores da alma!arrancar-lhe pedaços de sonho! - cora como um Deus a quem roubassem o universo recém-criado."

Resto 264

"O dinheiro, as crianças, os doidos...
Nunca se deve invejar a riqueza, senão platonicamente; a riqueza é liberdade."

Resto 263

" Como alguém cujos os olhos, erguidos de um longo...de um livro, receba(m) a violência para eles de um mero claro sol, se ergo às vezes de mim os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência-de-mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição e correlação dos movimentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais dos outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu entala-me e entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por sobre o som das suas palavras estranhas a ser ouvido em mim, o apoio forte e certo dos seus passos no chão actual, os seus gestos que existem verdadeiramente, os seus vários e complexos modos de serem outras pessoas que não variantes da minha.
Encontro-me então, nestas almas em que me precipito às vezes, desamparado e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida, que a primeira brisa deitará por terra e o primeiro contacto desfará em pó.
Pergunto então em mim próprio se valerá a pena todo o esforço que pus em me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha Glória Crucificada valerá religiosamente a pena? E, ainda que saiba que valeu, pesa-me nesse momento o sentimento de que não veleu, de que não valerá nunca."

Resto 262

" Tudo quanto é acção, seja a guerra ou o raciocínio, é falso; e tudo quanto é abdicação é falso. Pudesse eu saber como não agir nem abdicar de agir! Seria essa a coroa-de-sonho da minha glória, o ceptro-de-silêncio da minha grandeza.
Eu nem sofro. O meu desdém por tudo é tão grande que me desdenho a mim próprio; que, como desprezo os sofrimentos alheios, desprezo também os meus, e assim esmago sob o meu desdém o meu próprio sofrimento.
Ah, mas assim sofro mais...Porque dar valor ao próprio sofrimento põe-lhe o ouro dum sol do orgulho. Sofrer muito pode dar a ilusão de ser o Eleito da Dor. Assim..."

Resto 261

" Como invejo os que escrevem romances, que os começam, e os fazem, e os acabam! Sei imaginá-los, capítulo a capítulo, por vezes com as frases do diálogo e as que estão entre o diálogo, mas não saberia dizer no papel esses sonhos de escrever,..."

Resto 260

"As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente à vida. Talho frases inteiras,perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras, e um grande entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde quereria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afastados, um vento que ergue as folhas ao pé  do limiar deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher, que a nossa intuição diz que olharia para trás, e nunca chega a existir...
E sempre que me levantei da cadeira onde, na verdade, estas coisas não foram absolutamente sonhadas, tive a dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstracto em eu pensar e elas serem.
Fui génio mais que nos sonhos e menos que na vida. A minha tragédia é esta. Fui o corredor que caiu quase na meta, sendo até aí o primeiro."

Resto 259/b

" Poder escrever, em palavras sobre papel, que se possam depois ler alto e ouvir, os diálogos das personagens dos meus dramas imaginados! Esses dramas têm uma acção perfeita e sem quebra, diálogos sem falha, mas nem a acção se esboça em mim em comprimento, para que eu possa projectar em realização; nem são propriamente palavras o que forma a substância desses diálogos íntimos, para que, ouvidas com atenção, eu as possa traduzir para escritas.
Amo alguns poetas líricos porque não foram poetas épicos ou dramáticos, porque tiveram a justa intuição de nunca querer mais realização do que a do momento de sentimento ou de sonho.
O que se pode escrever inconscientemente tanto mede o possível perfeito. Nenhum drama de Shakespeare satisfaz como uma lírica de Heine. É perfeita a lírica de Heine, e todo o drama -de um Shakespeare ou de outro, é imperfeito sempre.Poder construir, erguer um Todo, compor uma coisa que seja como um corpo humano, com perfeita correspondência nas suas partes, e com uma vida, uma vida de unidade e congruência, unificando a dispersão de feitios das suas partes!
Tu, que me ouves e mal me escutas, não sabes o que é esta tragédia! Perder pai e mãe, não atingir a glória nem a felicidade, não ter um amigo nem um amor - tudo isso se pode suportar; o que não se pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja possível conseguir em acto ou palavras.
A consciência do trabalho perfeito, a fartura da obra obtida - suave é o sono sob essa sombra de árvore, no verão calmo."

Resto 259/a

" Se eu tivesse escrito o Rei Lear, levaria com remorsos toda a minha vida de depois. Porque essa obra é tão grande, que enormes avultam os seus defeitos...
Escrever uma obra de arte com o preciso tamanho para ser grande, e a precisa perfeição para ser sublime, ninguém tem o divino de o fazer, a sorte de o ter feito. O que não pode ir de um jacto sofre do acidentado do nosso espírito.
Se penso nisto entra com minha imaginação um desconsolo enorme, uma dolorosa certeza de nunca poder fazer nada de bom e útil para a Beleza. Não há método de obter a Perfeição excepto ser Deus. O nosso maior esforço dura tempo; o tempo que dura atravessa diversos estados da nossa alma,e cada estado de alma, como não é outro, qualquer, perturba com a sua personalidade a individualidade da obra. Só temos a certeza de escrever mal, quando escrevemos; a única obra grande e perfeita é aquela que nunca se sonhe realizar.
Escuta-me ainda, e compadece-te. Ouve tudo isto e diz-me depois se o sonho não vale mais que a vida. O trabalho nunca dá resultado. O esforço nunca chega a parte nenhuma. Só a abstenção é nobre e alta, porque ela é a que reconhece que a realização é sempre inferior, e que a obra feita é sempre a sombra grotesca da obra sonhada."

Resto 258

" Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugná-la-íamos, se a tivessemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito. O ódio surdo ao paraíso - o desejo como o da pobre infeliz de (que) houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstracto, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.
Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição. Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas. Amamos a sua aproximação do perfeito, porém a amamos porque é só aproximação."

Resto 257*

" Passávamos, jovens ainda, sob as árvores altas e o vago susurro da floresta. Nas clareiras, subitamente surgidas do acaso do caminho, o luar fazia-as lagos e as margens, emaranhadas de ramos, eram mais noite que a mesma noite. A brisa vaga dos grandes bosques respirava com o som entre o arvoredo. Falávamos das coisas impossíveis; e as nossas vozes eram parte da noite, do luar e da floresta. Ouvímo-las como se fossem de outros.
Não era bem sem caminhos a floresta incerta. Havia atalhos que, sem querer, conhecíamos, e os nossos passos ondeavam neles entre os mosqueamentos das sombras e o palhetar vago do luar duro e frio. Falávamos das coisas impossíveis e todas a paisagem real era impossível também."

Resto 256/b

" Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há acção, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põe num veículo, como mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
Que confusão é tudo! Como ver é melhor que pensar, e ler melhor que escrever! O que vejo, pode ser que me engane, porém não o julgo meu. O que leio, pode ser que me pese, mas não me perturba o tê-lo escrito. Como tudo dói se o pensamos como conscientes de pensar, como seres espirituais em quem se deu aquele segundo desdobramento da consciência pelo qual sabemos que sabemos! Embora o dia esteja lindíssimo, não posso deixar de pensar assim... Pensar ou sentir, ou que coisa terceira entre os cenários postos de parte? Tédios do crepúsculo e do desalinho, leques fechados, cansaço de ter tido que viver..."

Resto 256/a

" Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, interseccionadas, de que meu ser consciente se forme por interpretação.
Às vezes, em plena vida activa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.
Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam connosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entre-inserta de sonhos e romances,como caixinhas dentro de caixinhas maiores - umas dentro de outras e estas em mais - ,sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, descorrendo falsa na noite eterna."

Resto 255

" Não toquemos na vida nem com as pontas dos dedos.
Não amemos nem com o pensamento.
Que nenhum beijo de mulher, nem mesmo em sonhos, seja uma sensação nossa.
Artífices da morbidez, requintemo-nos em ensinar a desiludir-se. Curiosos da vida, espreitemos a todos os muros, antecansados de saber que não vamos ver nada de novo ou belo.
Tecelões da desesperança, teçamos mortalhas apenas - mortalhas brancas para os sonhos que nunca sonhámos, mortalhas negras para os dias que morremos, mortalhas com cor de cinza para os gestos que apenas sonhámos, mortalhas imperiais-de-púrpura para as nossas sensações inúteis."

Resto 254/b

" A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar...Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser...o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído."

Resto 254/a

" A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nesceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, tendo nacido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior gradeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela."

Resto 253*

" Depois que o fim dos astros esbranqueceu para nada no céu matutino, e a brisa se tornou menos fria no amarelo mal alaranjado da luz sobre as poucas nuvens baixas, pude enfim, eu que não dormira, erguer lentamente o corpo exausto de nada da cama de onde pensara o universo.
Cheguei à janela com os olhos quentes de não estarem fechados. Por sobre os telhados densos a luz fazia diferenças de amarelo pálido. Fiquei a contemplar tudo com a grande estupidez da falta de sono. Nos vultos erguidos das casas altas o amarelo era aéreo e nulo. Ao fundo do ocidente, para onde eu estava virado, o horizonte era aéreo e nulo. Ao fundo do ocidente, para onde eu estava virado, o horizonte era já de um branco verde.
Sei que o dia vai ser para mim pesado como não perceber nada. Sei que tudo quanto hoje fizer vai participar, não do cansaço do sono que não tive, mas da insónia que tive. Sei que vou viver um sonambulismo mais acentuado, mais epidérmico, não só porque não dormi, mas porque não pude dormir.
Há dias que são filosofias, que nos insinuam interpretações da vida, que são notas marginais, cheias de grande crítica, no livro do nosso destino universal. Este dia é um dos que sintos tais. Parece-me, absurdamente, que é com meus olhos pesados e o meu cérebro nulo que, lápis absurdos, se vão traçando as letras do comentário  inútil e profundo." 

Resto 252

" Primeiro é um som que faz outro som, no côncavo nocturno das coisas. Depois é um uivo vago, acompanhado pelo oscilar rasco das tabuletas da rua. Depois, ainda, há um alto de súbito na voz urrada do espaço, e tudo estremece, e não oscila, e há silêncio no medo disto tudo como um medo surdo que vê outro medo quando passado.
Depois não há mais nada senão o vento - só o vento, e reparo com sono que as portas estremecem presas e as janelas dão som de vidro que resiste.
Não durmo. Entre-sou. Tenho vestígios na consciência. Pesa em mim o sono sem que a consciência pese...Não sou. O vento... Acordo e redurmo e ainda não dormi. Há uma paisagem de som alto e torvo para além de que me desconheço. Gozo, recatado, a possibilidade de dormir. Com efeito durmo, mas não sei se durmo. Há sempre no que julgo que é o sono um som de fim de tudo, o vento no escuro, e, escuto ainda, o som comigo dos pulmões e do coração."

Resto 251

"Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo o que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora...
Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com meditações, que tenho que dominar à força, o processo automático da escrita como deve ser.
Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também serei quem aqui já não está,copiador antigo que vai ser arrumado no armário por baixo do vão da escada.
Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu. Irei para a terra natal? Não sei para onde irei. Hoje a tragédia é visível pela falta, sensível por não merecer que se sinta. Meu deus, meu Deus, o moço do escritório foi-se embora."

Resto 250

" A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia. A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros, ainda, se perdem...Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados - não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas...
Alhei a isto, e chorando só o preciso e no menos tempo que pode - quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários; quando perde dinheiro e chora enquanto não arranja outro, ou se não adapta ao estado de perda - a humanidade continua digerindo e amando.A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas."

Resto 245

" Cristo é uma forma da emoção.
No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites, nem até lógicos, e gozamos, no convivio de vários eternos, da coexistência de diferentes infinitos e de diversas eternidades."

Resto 244

"Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...

A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virginidades de grande entendimento.Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possído, e portanto perder-se.Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade."

Resto 243

" A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe de Dinamarca, não sentimos os nossos -vis porque são nossos e vis porque são vis.
Ao amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se,e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há despetar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso - o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.
Posuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência."

Resto 241

" O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com os lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai o cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo numa rua.Transtornara-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação,à única verdade, que é a literatura."

Resto 239/b

"Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiza que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.
Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstracta, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem - di-lo-ia Vieira - literais. É na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.
E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. 
São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.
Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele peculiar, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso pessoal da nossa recordação.
E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornase independente, soam, soam, soam as escalas lá em baixo, lé em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar."

Resto 239/a

"Quando vim para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas...Descubro hoje que, por processo de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco, onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade...Não choro a perda da infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cerebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação."

Resto 238

" A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.
E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo... Sonho uma vida erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios na contradição dos mediadores e dos que quase pensaram, que são a maioria dos que escreveram. Mas só a ideia de ler se me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer, o facto físico de ter que ler anula-me a leitura...Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também sou - à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insónias de acordado.
E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo os olhos de protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez sereia se tivesse aprendido a cantar."