Resto 315/b

" Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado ralizar. Realizei tudo quanto quiz, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profecticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, " Aqui me vou mexendo".
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projector do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo; sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os actores e as actrizes, os palhaços e os prestigiadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste,a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance..."

Resto 315/a

" Nada pesa tanto como o afecto alheio - nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afecto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e procuraram, nos não deixam sós.
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida - ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossa. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e directo; que tem que fazer que(m) assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?
Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez, em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge - campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades -, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distracção inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas."

Resto 314

" A sua vida...
   Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.
  Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo."

Resto 313

" Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja dificil sê-lo: é sonhar-se banal - horror supremo.
E já que queremos ser estéreis, sejamos também castos, porque pode haver mais ignóbil e baixo do que, renegando da Natureza o que nela é fecundado, guardar vilãmente dela o que nos praz no que renegámos. Não há nobrezas aos bocados.
Sejamos castos como eremitas, puros como corpos sonhados, resignados a ser tudo isto, como freirinhas doisas...
Que o nosso amor seja uma oração...
Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei como, não sei em que espaço, não sei por que tempo, vitrais eternos, horas de ingénuo desenho pintado por um qualquer artista que dorme há muito sob o túmulo godo onde dois anjos de mãos postas gelam em mármore a ideia de morte."

Resto 312

"...
Só a estrilidade é nobre e digna. Só o matar o que nunca foi é alto e perverso e absurdo"

Resto 311

"...
Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmeras de ser sempre o mesmo e outro.
Por degraus de sonhos e cansaços meus desce da tua irrealidade, desce e vem substituir o mundo."

Resto 310/b

"Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que resultou a vida. Eram dois belos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do amor que não tinha tido. Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mão dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se assumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite que não durmo, e também sei viver feliz."

Resto 310/a

"Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa de outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo.
A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.
Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruído  da chuva lá fora, a tornar-mos mais vagos ainda. São adivinhas do vácuo, trémulas de abismo, e através delas se escoa, inútil, a plagência externa da chuva constante, minúcia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que vento alça. Continuo dormindo."

Resto 309*

" Na minha alma ignóbil e profunda registo, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado.
Há quem estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa madorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.
Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.
Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias do meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e não só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorta negro contra o céu azul escuro esbranquiçado a amarelo leite.
Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cair, como um episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma.  Rola para debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim."

Resto 308*

"Não acredito na paisagem. Não o digo porque creia no «a paisagem é um estado de alma» do Amiel, um dos momentos verbais da sua insuportável interiorice. Digo-o porque não o creio."

Resto 307*

"Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique essa imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de facto visse, um sol por trás dos montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.
Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão dormidos, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago morto entre rochedos onde o último do sol paira desoladamente.
Porque parei, estremeceram as águas. Porque reflecti, o sol recolheu-se.
Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.
Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.
Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos-bravos, morta, fluida, húmida e sinistra."