Refugo/034

Agi sempre para dentro... Nunca toquei na vida... Sempre que esboçava um gesto, acabava-o em sonho, heroicamente...Uma espada pesa mais que a ideia de uma espada... Comandei grandes exércitos — venci grandes batalhas, gozei grandes derrotas — tudo dentro de mim... 
Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes...Eu nunca tive noiva real...Nunca soube como se amava...Apenas soube como se sonhava amar...Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha...Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia...Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando.

Refugo/033

Pastoral de Pedro

Não sei onde te vi nem quando. Não sei se foi num quadro ou se foi no campo real, ao pé de árvores e ervas contemporâneas do corpo; foi num quadro talvez, tão idílica e legível é a memória que de ti conservo. Nem sei quando isto(se) passou, ou se se passou realmente - porque pode ser que nem em quadro eu te visse -, mas sei com todo o sentimento da minha inteligência que esse foi o momento mais calmo da minha vida. 
Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi manso e enorme, calmos pelo risco largo da estrada. Desde longe - parece-me - eu os vi, e viestes até mim e passastes. Pareceste não reparar na minha presença. Ias lenta e guardadora descuidada do boi grande. O teu olhar esquecera-se de lembrar e tinha uma grande clareira de vida de alma; abandonara-te a consciência de ti própria. Nesse momento nada mais eras do que um(...) 

Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os campos são eternos.  
Chamam bíblicas às pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos bíblicos deviam ter sido. 

É no recorte passageiro da tua figura anónima que eu ponho toda a evocação dos campos, e a calma toda que eu nunca tive chega-me à alma quando penso em ti. O teu andar tinha um balouçar leve, um ondular incerto, em cada gesto teu pousava uma ave tinhas trepadeiras invisíveis enroscadas no do teu busto. O teu silêncio - era o cair da tarde, e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas encostas pálidas da hora - o teu silêncio era o canto do último pegureiro que, por esquecido de uma écloga nunca escrita de Virgílio, ficou eternamente encantado, e eterna nos campos, silhueta. Era possível que estivesses sorrindo; para ti apenas, para a tua alma, vendo-te a ti na tua ideia, a
sorrir. Mas os teus lábios eram calmos como o recorte dos montes; e o gesto, que deslembro, de tuas mãos rústicas engrinaldado com flores do campo.
Foi num quadro, sim, que te vi. Mas donde me vem esta ideia de que te vi aproximares-te e passares por mim e eu seguir, não me voltando para trás por te estar vendo sempre e ainda? Estaca o Tempo para te deixar passar, e eu erro-te quando te quero colocar na vida - ou na semelhança da vida."

Refugo/032

“Um azul esbranquiçado de verde nocturno punha em recorte castanho negro,vagamente aureolado de cinzento amarelecido,a irregularidade fria dos edifícios que estavam de encontro ao horizonte do estio.
Dominámos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.”