Primeiras Entranhas

R/341
"Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de facto à varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale. Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anónimo, prolixa e incompreendida."R/326
"Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil."
R/325*
"São especulações casuais inúteis. Chego a ter pena de as ter. Não diminui com elas a valia do homem; não aumenta com elas a expressão do seu corpo. Mas, na verdade, nada altera nada, e o que dizemos ou fazemos roça só os cimos dos montes, em cujos vales dormem as coisas." 
R/320*
"Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, imponderávelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um refúgio, mesmo sem razão para o buscar.
Sentir tudo subtilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não pode obter - sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas, actividades humanas congruentes com o sentir profundamente, paixões e emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies."
R/309
" Na minha alma ignóbil e profunda registo, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões... Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra."
R/307
"Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique essa imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de facto visse, um sol por trás dos montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro."
R/306
"...a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim."
R/302
"...e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
...senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente,quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera"
R/299
"Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim,que, se eu passar as mão pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer."
R/298
"Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolonga, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada."
R/288
"E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida."
R/287
"O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via...Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia,floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza,e eu via-me nos lagos deles como Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segregada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se."
R/280
"por entre as grades traseira do armazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão que é a minha vida."
R/239
"Descubro hoje que, por processo de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco, onde verdejam negros os ciprestes...Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele peculiar, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso pessoal da nossa recordação."
R/238
"Toda a vasta visibilidade do mundo me precorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possívies aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou."
R/237
"Posso passar sem tédio um domingo inerte; sofrê-lo repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.
...É na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra,ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu...Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade,"
R/236**
"Cheguei hoje de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado."
R/233
"Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenheiria sintáctica, me  faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida...
...E, assim, muitas vezes escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frase sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturaram e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo-se a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
 ...Minha pátria é a lingua portuguesa...Mas odeio, com ódio verdadeirro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.Sim, porque a ortografia também é gente." 
R/206
"Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim - lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar morto, em que a altura se contempla esquecida." 
R/199
"Tudo o que tenho tido é como este céu alto e diversamente o mesmo, farrapos de nada tocados de uma luz distante, frangmentos de falsa vida que a morte doura de longe, com o seu sorriso triste de verdade inteira."
R/198
"...Para quê olhar para os crepúsculos se tenho em mim milhares de crepúsculos diversos - alguns dos quais que o não são - e se, além de os olhar dentro de mim, eu próprio os sou, por dentro?"
R/186
"Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há un resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela preseça inevitável do universo."
R/182
" ...Descia-se para a praia por uma escada tosca, que começava, em cima, em escada de madeira, e a meio se tornava em recorte de degraus na rocha, com corrimão de ferro ferrugento. E, sempre que eu descia a escada velha, e sobretudo da pedra aos pés para baixo, saía da minha própria existência, encontrando-me."
R/180
"Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, tristes de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas."
R/170
"Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios." 
R/168
"...Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento...Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é i-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimento." 
R/167 
"...Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro de texto intersperso de imagens rápidas, de que vou formando indolentemente uma ideia que nunca se completa.Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua sem ter visto tudo. Assim tiro do livro que se me folheia na alma uma história vaga por contar, memórias de um outro vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou luares, com áleas de parques no meio, e figuras de seda várias, a passar, a passar...Há só, nas viscosidade aérea da rua abstracta, um fio externo de sentimento, como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a consciência da alma." 
R/162 
"Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombreada de espectros tímidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado, ou estão eles, e há grandes ruídos de árvores em meu torno. Divago e encontro; encontro porque divago. Meus dias de criança vestidos vós mesmos de bibe!" 
R/149 
"Revolução? Mudança? O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver começar a surgir de entre elas verdade certa e clara porque nada é nem quer."

R/146
"Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem misturar, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul e uma página impressa dum livro antiguo. Que absurdo que isto parace! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos."
R/144
"E comecei, a sós comigo, a fazer barcos de papel com a mentira que me haviam dado. Ninguém me quiz acreditar, nem por mentiroso, e não tinha lago com que provasse a minha verdade."
R/140
" Lento, no luar lá fora da noite lenta, o vento agita coisas que fazem sombra a mexer.Não é talvez sombra que deixaram estendida no andar mais alto, mas a sombra, em si, não conhece camisas e flutua impalpável num acordo mudo com tudo...a noite é já tão velha que nada se ouve...Um luar está para além das sombras do meu quarto, mas não passa pela janela...E sem ver, sem pensar, olhos fechados já sobre o sono ausente, medito com que palavras verdadeiras se poderá descrever o luar...se abro os lhos que têm o sono que não tenho, é um ar de neve tornada cor onde bóiam filamentos de madrepérola morna. E, se o sinto com o que sinto, é um tédio tornado sombra branca, escurecendo como se olhos se fechassem sobre essa indistinta brancura."
 R/129
"Há qualquer coisa do meu desassossego no gota a gota, na bátega a bátega com que a tristeza do dia se destorna inutilmente por sobre a terra.
Chove tanto, tanto. A minha alma é húmida de ouvi-lo. Tanto...A minha carne é líquida e aqueosa em torno á minha sensação dela...Como chove!
As biqueiras golfam torrentes mínimas de água sempre súbitas. Desce pelo meu saber que há canos um barulho perturbador de descida de água."
 R/123
"...Ser uma consciência abstracta de respirar sossegadamente, sem mundo, sem astros, sem alma - mar morto de emoção reflectindo uma ausência de estrelas."
 R/103
"...seria tudo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até (ao) cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim...E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas estética de Norte a Sul."
 R/89
"Nem olho o dia, para ver o que ele tem que me distraia de mim, e, escrevendo-o eu aqui em descrição, tape com palavras a xícara vazia do meu não me querer."
 R/82
"...por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum excepto Deus."
 R/80
"Então também temos a nossa noite, e o cansaço de todas as emoções aprofunda-se com serem emoções do pensamento, já de si profundas.Mas é uma noite sem repouso, sem luar, sem estrelas, uma noite como se tudo houvesse sido virado do avesso - o infinito tornado interior e apertado, o dia feito forro negro de um trajo desconhecido."
 R/70
"São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro."
 R/61
" Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual"
R/55
"Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em querer construir."
R/52
"Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de celulas-mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos, estranhas conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura.
Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo."
R/36
"E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça sobre o meu encostado à janela, e , por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimentos o ar pardo e mau."
R/26
"Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo,o silêncio da casa toca no infinito.Oiço cair o tempo gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração fisico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui."
R/24
"E quando me debrucei da janela altíssima,sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente."