Despojo/066

"A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitados por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjectividade."
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Despojo/065

"As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos de compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim."
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Despojo/064

" O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo."
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Despojo/063

"Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses maus tratos, por uma transferência astral, se reflictam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedo de um demónio das fadas, exercidas, sobre uma imagem minha, senão sobre a sombra. É na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra,ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu."
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Despojo/062

"E eu que digo isto - porque escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,...- eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria."
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Despojo/061

"Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio."
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