Despojo/051

"Nos espíritos a que chamam calculistas – e a palavra é muito bem delineada –, os sentimentos sofrem a delimitação do cálculo, do escrúpulo egoísta, e parecem outros."
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Despojo/050

"Tudo quanto é abstracto é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstracções que formei, se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever."
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Despojo/049

"Os portões do meu afastamento abrangem para parques de infinito, mas ninguém passa por eles, nem no meu sonho – mas abertos sempre para o inútil e de ferro eternamente para o falso..."
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Despojo/048

"Há dias em que em mim se comeu de mais.Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho."
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Despojo/047

"Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica."
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Despojo/046

"As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sesualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros."
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Despojo/045

"Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também sou - à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insónias de acordado."
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Despojo/044

“Como então me não engano sobre os meus íntimos processos de ilusão de mim? Porque o processo que arranca para uma realidade mais que real um aspecto do mundo ou uma figura de sonho, arranca também para mais que real uma emoção ou um pensamento; despe-o portanto de todo o apetrecho de nobre ou puro quando, o que quase sempre acontece, o não é.”
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Despojo/043

"Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece..."
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Despojo/042

"Releio, em uma destas sonolências sem sono, em que nos entretemos inteligentemente sem a inteligência, algumas das páginas que formarão, todas juntas, o meu livro de impressões sem nexo. E delas me sobe, como um cheiro de coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto que, ainda ao dizer que sou sempre diferente, disse sempre a mesma coisa; que sou mais análogo a mim mesmo do que quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência de saldo de mim mesmo, de um equilíbrio involuntário que me desola e enfraquece."
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