Refugo/024

"A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra. 
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor. 
Meu destino é a decadência. 
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca  sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas."

Refugo/023

"Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito - como através dele compreender’? Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro. Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer - eu sou eu? Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não.Possui outra sensação.Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?  Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer te. Mas do que comes não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?"

Refugo/022

"À minha incapacidade de viver crismei de génio, à minha cobardia cobri-a de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num altar de papelão pintado para parecer mármore.
Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me."