Resto 330

" Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria...
Possuímos a alma? que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne húmida dos lábios perecíveis e mucosas; a própria cópula é um contacto apenas, um contacto esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer de um corpo por outro ... Que possuímos nós? que possuímos?
As nossas sensações, ao menos ? Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos, a nós, as nossas sensações? é, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos?e, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela connosco sempre, e assim realmente possuímos...
Desenganemo-nos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. Não fales. A memória, afinal, é a sensação do passado... E toda a sensação é uma ilusão...
-Escuta-me, escuta-me sempre. Escuta-me e não olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o crepúsculo(...), nem esse silvo de um comboio que corta ao longe vago(...) - Escuta-me em silêncio...
Não não possuímos as nossas sensações... Nós não nos possuímos nelas...
(Urna inclinada, o crepúsculo verte sobre nós um óleo de (...) onde as horas, pétalas de rosas, bóiam espaçadamente.)