Resto/476c

" O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sensação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciência objectiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mundo, e a sua personalidade. Nada mais objectivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si. Sobre essas duas realidades requinta ele a sua ciência. É muito diferente já da ciência dos antigos científicos, que, longe de buscarem as leis da sua própria personalidade e a organização dos seus sonhos, procuravam as leis do “exterior” e a organização daquilo a que chamavam “Natureza”.

Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar. As circunstâncias da minha vida, desde criança sozinho e calmo, outras forças talvez, amoldando-me, de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios. Tudo o que eu sou está nisto, e mesmo aquilo que em mim mais parece longe de destacar o sonhador, pertence sem escrúpulo à alma de quem só sonha, elevada ela ao seu maior grau.
Quero, para meu próprio gosto de analisar-me, ir, à medida que a isso me ajeite, ir pondo em palavras os processos mentais que em mim são um só, esse, o de uma vida devotada ao sonho, de uma alma educada só em sonhar.