Resto/462h

"Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Porque
tenho de te falar com ternura e amoroso sonho, as palavras encontram voz para isso apenas em te tratar como feminina.
Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. És como que um sentimento que fosse o seu próprio objecto e pertencesse todo ao íntimo de si próprio. És sempre a paisagem que eu estive quase para poder ver, a orla da veste que por pouco eu não pude ver, perdida num eterno Agora para além da curva do caminho. O teu perfil é não seres nada, e o contorno do teu corpo irreal desata em pérolas separadas o colar da idéia de contorno. Já passaste, e já foste e já te amei – o sentir-te presente é sentir isto.
Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não te penso nem te sinto, mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir, e os meus sentimentos góticos de evocar-te.
Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem nítida de vazio da minha imperfeição compreendendo-se. O meu ser sente-te vagamente, como se fosse um cinto teu que te sentisse. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu céu para que o causes, ou estranha lua submarina para que, não sei como, o finjas.
Quem pudesse criar o Novo Olhar com que te visse, os Novos Pensamentos e Sentimentos que houvessem de te poder pensar e sentir!
Ao querer tocar no teu manto as minhas expressões cansam o esforço estendido dos gestos de suas mãos, e um cansaço rígido e doloroso gela-se nas minhas palavras. Por isso, curva um vôo de ave, que parece que se aproxima e nunca chega, em torno ao que eu quereria dizer de ti, mas a matéria das minhas frases não sabe imitar a substância ou do som dos teus passos ou do rasto dos teus olhares, ou da cor triste e vazia da curva dos gestos que não fizeste nunca."