Resto/476f

"As coisas são a matéria para os meus sonhos; por isso aplico uma atenção distraidamente sobreatenta a certos detalhes do Exterior.
Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como é que as paisagens reais e as personagens da vida nos aparecem relevadas. Porque a visão do sonhador não é como a visão do que vê as coisas. No sonho, não há o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objeto que há na realidade.
Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual.
Em mim esta atitude, que o muito sonhar me enquistou, faz-me ver sempre da realidade a parte que é sonho. A minha visão das coisas suprime sempre nelas o que o meu sonho não pode utilizar. E assim vivo sempre em sonhos, mesmo quando vivo na vida. Olhar para um poente em mim ou para um poente no Exterior é para mim a mesma coisa, porque vejo da mesma maneira, pois que a minha visão é talhada mesmamente."