Resto/472a

"Viagem nunca feita I

Foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz.
O céu – impossivelmente me recordo – era dum resto roxo de ouro triste, e a linha agónica dos montes, lúcida, tinha uma auréola cujos tons de morte lhe penetravam amaciadores, na astúcia do seu contorno.
Da outra amurada do barco (estava mais frio e era mais noite sob esse lado do toldo) o oceano tremia-se até onde o horizonte leste se entristecia, e onde, pondo penumbras de noite na linha líquida e obscura do mar extremo, um hálito de treva pairava como uma névoa em dia de calor.
O mar, recordo-me, tinha tonalidades de sombra, de mistura com figuras ondeadas de vaga luz – e era tudo misterioso como uma ideia triste numa hora de alegria, profética não sei de quê.
Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de portos inexistentes – portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais. Julgais, sem dúvida, ao ler-me, que as minhas palavras são absurdas. É que nunca viajastes como eu. Eu parti? Eu não vos juraria que parti. Encontrei-me em outras partes, vi outros portos, passei por cidades que não eram aquela, ainda que nem aquela nem essas fossem cidades algumas. Jurar-vos que fui eu que parti e não a paisagem, que fui eu que visitei outras terras e não elas que me visitaram – não vo-lo posso fazer. Eu que, não sabendo o que é a vida, nem sei se sou eu que a vivo se é ela que me vive(tenha esse verbo oco “viver” o sentido que quiser ter), decerto não vos irei jurar qualquer coisa."