Despojo/041

"A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar pararia."
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Despojo/040

"A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto."
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Refugo/039

"Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim,amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um "o que será dele?". E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer."
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Despojo/038

"Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistintamente incompreensível como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito."
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Despojo/037

"Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra."
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Despojo/036

" A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudança. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atónito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuado como o mundo palpável."
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Despojo/035

"Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projecta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstracto observar era uma negação ainda."
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Despojo/034

"Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência nunca certos com o que somos ou com o que supomos ser. "
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Despojo/033

"Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem não lhe interessa."
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Despojo/032

"És como que um sentimento que fosse o seu próprio objecto e pertencesse todo ao íntimo de si próprio. És sempre a paisagem que eu estive quase para poder ver, a orla da veste que por pouco eu não pude ver, perdida num eterno Agora para além da curva do caminho."
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Despojo/031


"Estas expressões não traduzem exactamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exactamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim."
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Despojo/030

"Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto, que está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o vácuo do mundo."*

Despojo/029

"É entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida. Nessa região indeterminada, sombria, de florestas e sons de água toda, neutral até ao ruído das nossas guerras, decorre aquele meu ser cuja visão em vão procuro..."
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Despojo/028

"Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos."
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Despojo/027

"Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançamentos inconscientes através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem."
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Despojo/026

"Quanto mais alta a sensibilidade, e mais subtil a capacidade de  sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas."
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Despojo/025

"Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, tristes de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas."
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Despojo/024

"Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias - está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é."
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Despojo/023

"Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. devo ser alguém."
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Despojo/022

" Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo é artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco da manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama."
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Despojo/021

"O que sinto, na verdadeira substância com o que sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti."
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Despojo/020

"...sono é a análise lenta das sensações, seja ela usada como uma ciência atómica da alma, seja ela dormida como uma música da vontade, anagrama lento da monotonia." 
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Despojo/019

"Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse, o primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. "
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Despojo/018

"Reduzir a sensação a uma ciência, fazer da análise psicológica um método preciso como um instrumentode micróscopio – pretensão que ocupa, sede calma, o nexo de vontade da minha vida..."
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Despojo/017

"O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta databacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim,amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um“o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer."
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Despojo/016

"Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir, por o que contêm de subtil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismo orgânico – estômago, fígado ou cérebro. Quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vómito! Quantas vezes..."
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Despojo/015

"A que beira estou se me vejo no fundo?"
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Despojo/014

"Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma."
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Despojo/013

"E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas,eu que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também."
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Despojo/012

A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência.”
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Despojo/011

"O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sensação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciência objectiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mundo, e a sua personalidade. Nada mais objectivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si."
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Despojo/010

" Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender "
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Despojo/009

"Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez."
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Despojo/008

"A náusea física directa, sentida directamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta..."
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Despojo/007

"Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar."
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Despojo/006

"Teorias metafísicas que possam dar-nos um momento a ilusão de que explicámos o inexplicável; teorias morais que possam iludir-nos uma hora com o convencimento de que sabemos por fim qual, de todas as portas fechadas, é o ádito da virtude; teorias políticas que nos persuadam durante um dia que resolvemos qualquer problema, sendo que não há problema solúvel, excepto os da matemática - resumamos a nossa atitude para com a vida nesta acção conscientemente estéril, nesta preocupação que, se não dá prazer, evita, ao menos, sentirmos a presença da dor."
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Despojo/005

"O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia os amores todos que são os absurdiandos do amor."
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Despojo/004

"– Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido – tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece."
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Despojo/003

"Em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me, seguir ao  mesmo tempo duas, diversas operações mentais eu, ao passo que me vou adaptando em excesso e lucidez ao sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido estado da alma deles, fazendo a análise puramente objectiva do que eles são e pensam."
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Despojo/002

"Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objecto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade.Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer."
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Despojo/ 001

" E eu, verdadeiramente eu sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda."
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