Primeiras Paisagens

R/310
Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mão dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se assumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de onde iam."
R/309
"O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e não só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorta negro contra o céu azul escuro esbranquiçado a amarelo leite. Distingo-me a esfinges."
R/288
"outras mais verde, da própria ausência da substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas;era, não já um torpor, mas um tédio,em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam."
R/287
"Foi um mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma."
R/199
"...Há um grande sossego acima do nível ruidoso da cidade que vai também sossegando. Tudo respira para além da cor e do som, num hausto fundo do mundo."
R/176
"Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca de mais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflecte-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra."
R/174
" O ar é de um amarelo escondido, como um amarelo pálido visto através de um branco sujo. Mal hé amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento, porém, tem um amarelo na sua tristeza." 
R169
"Dentro de pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com o esperá-la. Era, ou parecia, um pouco mais límpido o céu para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado. Suava-se na sombra da sala grande do escritório. "Vem aí uma grande trovoada", disse o Moreira, e voltou a página da Razão."
R150
"Quase me culpo de estar escrevendo estas meias reflexões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-se, uma brisa ligeira. Colorindo-se não, que não é ela que se colora, mas o ar em que bóia incerta; mas como me parece que é ela mesma que se colora, é isso que digo, pois hei-depor força dizer o que me parece, visto que sou eu."
 R85
"E tudo isto, no passeio à beira mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção!"
R84
"Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com o que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem...que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois eu, porque vos vejo, sois o que serei amanhã,  e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem."

R82
"Nas minhas própria paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam - quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisagem - uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar."
R73
"Uso com mais conforto o sentimento externo da vida. E tudo isto, efectivamente, porque, ao chegar quase à esquina, um virar no ar da brisa me alegra a superficie da pele."
R69
"Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem...Ao fundo o rio está cansado"
R66
"Um poente é um fenómeno intelectual."
R64
"No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do previlégio.Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos." 
R59
"Nesses dias estou errado...sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa....se me esqueço, sou normal....Mas a ilusão não dura muito, tanto porque não dura como porque a noite vem. E a cor das flores, a sombra das árvores, o alinhamento da ruas e canteiros, tudo se esbate e encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se escondesse para mim, o grande cenário das estrelas. E então esqueço com os olhos a plateia amorfa e aguardo os primeiros actores com um sobressalto de criança no circo.Estou liberto e perdido...sou eu"
 R58
" Não sei onde ia coduzir os pensamentos, ou onde preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro húmido e quente, triste sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência."
R57
"Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados."
R52
"Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura humidamente amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedragulhos."


R42
"Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações-áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se vizualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações confusas."

R38
"Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida,todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastan tornadas cinzas de nevoeiros, farapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado"

R36
"Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que se destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou...E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça sobre o meu encostado à janela, e , por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimentos o ar pardo e mau.
Mas não há sossego - ah, nem o haverá nunca! - no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sotão da casa alheia. Não há sossego..."