Despojo/114

 "Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil."*

Despojo/113

 "Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado."*

Despojo/112

 " Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato."*

Desojo/111

 "Só eles sabem que nós somos presa da ilusão que nos criaram. Mas qual a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram - isso, por certo, eles mesmos não sabem."*

Despojo/110

"Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser natural, e é o natural que é estranho.Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente.A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade."* 

Despojo/109

 "Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreender-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende."*

Despojo/108

 "Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando-a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo."*

Despojo/107

 "Numa cela ou num deserto está o infinito.Numa pedra dorme-se cósmicamente."*

Despojo/106

 "A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra. Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los."*

Despojo/105

 “Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir.    Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão."*

Despojo/104

 "Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço."*

Despojo/103

 "A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total."*

Despojo/102

 "Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte."*

Despojo/101

 "Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a cobardia; é entregarmo-nos totalmente à vida."*

Despojo/100

 "...Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer."*

Despojo/099

 "Escuto-me sonhar. Embalo-me com o som das minhas imagens... Soletra-se-me em recônditas melodias(...) 

O som duma frase imageada vale tantos gestos! Uma metáfora consola de tantas coisas!
Escuto-me... São cerimoniais em mim... Cortejos... Lantejoulas no meu tédio... Bailes de máscaras...Assisto à minha alma com deslumbramento..."*

Despojo/098

 "Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro."*

Despojo/097

 "Não sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento."*

Despojo/096

 "Um dia...


Em vez de almoçar – necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim...
Viver não vale a pena."*

Despojo/095

"Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar pararia."*

Despojo/094

 "Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros."*

Despojo/093

"Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação."*

Despojo/092

 "Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever."*

Despojo/091

 "E por detrás da derrota surge a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado "*

Despojo/090

"O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço."*

Despojo/089

 "Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação."*

Despojo/088

 "Os verbos! Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costuma dizer-me que procurava o micróbio da significação...Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si...Um revólver e..."*

Despojo/087

 "Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo."*

Despojo/086

 " Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima directamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível."*

Despojo/085

" E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser..."*


Despojo/084

 " Somos morte. isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos."*

Despojo/083

 " Os dias de sol sabem-me ao que eu tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta - éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos...Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos."*

Despojo/082

 "Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração."*

Despojo/081

"Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os teve; alguns alcançam a memória da civilização que os possuiu; raros abrangem, de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes."* 

Despojo/080

 "Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida."*

Despojo/079

"A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exactidão inscrita num livro irónico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras."*

Despojo/078

 "Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida."*

Despojo/077

 "A vasta rede de inconsciências que é toda a acção que eu vejo parece-me uma ilusão absurda, sem coerência plausível, nada."*

Despojo/076

 "Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão."*

Despojo/075

"A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada."*

Despojo/074

"O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo."*

Despojo/073

"Tudo em mim é uma tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual.Tudo me interessa e nada me prende."*

Despojo/072

 "Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém... E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe..."*

Despojo/071


"Todo o espectáculo é a imitação degradada do que havia apenas de sonhar-se."*

Despojo/070

"A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?"
*

Despojo/069

"A vida, disse Tarde, é a busca do impossível através do inútil. Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade."
*

Despojo/068

" Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa."*

Despojo/067

“Nenhum prémio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem seria justo que houvesse tal prémio ou tal castigo. Virtude ou pecado são manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão."
*

Despojo/066

"A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitados por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjectividade."
*

Despojo/065

"As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos de compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim."
*

Despojo/064

" O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo."
*

Despojo/063

"Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses maus tratos, por uma transferência astral, se reflictam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedo de um demónio das fadas, exercidas, sobre uma imagem minha, senão sobre a sombra. É na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra,ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu."
*

Despojo/062

"E eu que digo isto - porque escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,...- eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria."
*

Despojo/061

"Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio."
*

Despojo/060

"As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida."
*

Despojo/059

"Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem sensação, o traje de alegria natural de que usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimento o ar pardo e mau."
*

Despojo/058

"A vida é uma viagem experimental,feita involuntariamente.É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas."
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Despojo/057


"Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que não o seja, não mais que cenário e decoração."
*

Despojo/056

"O que é supérfluo é a menos para o artista, porque, perturbando-o, diminui o efeito."
*

Despojo/055

"Quando vivemos constantemente no abstracto – seja o abstracto do pensamento, seja o da sensação pensada –, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.”
*

Despojo/054

“Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de ideias nossas no mais directo olhá-las"
*

Despojo/053

O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite."
*

Despojo/052

"Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro."
*

Despojo/051

"Nos espíritos a que chamam calculistas – e a palavra é muito bem delineada –, os sentimentos sofrem a delimitação do cálculo, do escrúpulo egoísta, e parecem outros."
*

Despojo/050

"Tudo quanto é abstracto é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstracções que formei, se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever."
*

Despojo/049

"Os portões do meu afastamento abrangem para parques de infinito, mas ninguém passa por eles, nem no meu sonho – mas abertos sempre para o inútil e de ferro eternamente para o falso..."
*

Despojo/048

"Há dias em que em mim se comeu de mais.Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho."
*

Despojo/047

"Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica."
*

Despojo/046

"As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sesualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros."
*

Despojo/045

"Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também sou - à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insónias de acordado."
*

Despojo/044

“Como então me não engano sobre os meus íntimos processos de ilusão de mim? Porque o processo que arranca para uma realidade mais que real um aspecto do mundo ou uma figura de sonho, arranca também para mais que real uma emoção ou um pensamento; despe-o portanto de todo o apetrecho de nobre ou puro quando, o que quase sempre acontece, o não é.”
*

Despojo/043

"Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece..."
*

Despojo/042

"Releio, em uma destas sonolências sem sono, em que nos entretemos inteligentemente sem a inteligência, algumas das páginas que formarão, todas juntas, o meu livro de impressões sem nexo. E delas me sobe, como um cheiro de coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto que, ainda ao dizer que sou sempre diferente, disse sempre a mesma coisa; que sou mais análogo a mim mesmo do que quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência de saldo de mim mesmo, de um equilíbrio involuntário que me desola e enfraquece."
*

Despojo/041

"A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar pararia."
*

Despojo/040

"A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto."
*

Refugo/039

"Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim,amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um "o que será dele?". E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer."
*

Despojo/038

"Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistintamente incompreensível como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito."
*

Despojo/037

"Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra."
*

Despojo/036

" A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudança. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atónito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuado como o mundo palpável."
*

Despojo/035

"Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projecta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstracto observar era uma negação ainda."
*

Despojo/034

"Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência nunca certos com o que somos ou com o que supomos ser. "
*

Despojo/033

"Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem não lhe interessa."
*

Despojo/032

"És como que um sentimento que fosse o seu próprio objecto e pertencesse todo ao íntimo de si próprio. És sempre a paisagem que eu estive quase para poder ver, a orla da veste que por pouco eu não pude ver, perdida num eterno Agora para além da curva do caminho."
*

Despojo/031


"Estas expressões não traduzem exactamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exactamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim."
*

Despojo/030

"Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto, que está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o vácuo do mundo."*

Despojo/029

"É entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida. Nessa região indeterminada, sombria, de florestas e sons de água toda, neutral até ao ruído das nossas guerras, decorre aquele meu ser cuja visão em vão procuro..."
*

Despojo/028

"Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos."
*

Despojo/027

"Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançamentos inconscientes através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem."
*

Despojo/026

"Quanto mais alta a sensibilidade, e mais subtil a capacidade de  sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas."
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Despojo/025

"Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, tristes de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas."
*

Despojo/024

"Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias - está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é."
*

Despojo/023

"Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. devo ser alguém."
*

Despojo/022

" Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo é artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco da manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama."
*

Despojo/021

"O que sinto, na verdadeira substância com o que sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti."
*

Despojo/020

"...sono é a análise lenta das sensações, seja ela usada como uma ciência atómica da alma, seja ela dormida como uma música da vontade, anagrama lento da monotonia." 
*

Despojo/019

"Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse, o primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. "
*

Despojo/018

"Reduzir a sensação a uma ciência, fazer da análise psicológica um método preciso como um instrumentode micróscopio – pretensão que ocupa, sede calma, o nexo de vontade da minha vida..."
*

Despojo/017

"O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta databacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim,amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um“o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer."
*

Despojo/016

"Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir, por o que contêm de subtil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismo orgânico – estômago, fígado ou cérebro. Quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vómito! Quantas vezes..."
*

Despojo/015

"A que beira estou se me vejo no fundo?"
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Despojo/014

"Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma."
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Despojo/013

"E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas,eu que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também."
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Despojo/012

A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência.”
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Despojo/011

"O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sensação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciência objectiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mundo, e a sua personalidade. Nada mais objectivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si."
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Despojo/010

" Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender "
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Despojo/009

"Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez."
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Despojo/008

"A náusea física directa, sentida directamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta..."
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Despojo/007

"Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar."
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Despojo/006

"Teorias metafísicas que possam dar-nos um momento a ilusão de que explicámos o inexplicável; teorias morais que possam iludir-nos uma hora com o convencimento de que sabemos por fim qual, de todas as portas fechadas, é o ádito da virtude; teorias políticas que nos persuadam durante um dia que resolvemos qualquer problema, sendo que não há problema solúvel, excepto os da matemática - resumamos a nossa atitude para com a vida nesta acção conscientemente estéril, nesta preocupação que, se não dá prazer, evita, ao menos, sentirmos a presença da dor."
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Despojo/005

"O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia os amores todos que são os absurdiandos do amor."
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Despojo/004

"– Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido – tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece."
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Despojo/003

"Em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me, seguir ao  mesmo tempo duas, diversas operações mentais eu, ao passo que me vou adaptando em excesso e lucidez ao sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido estado da alma deles, fazendo a análise puramente objectiva do que eles são e pensam."
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Despojo/002

"Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objecto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade.Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer."
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Despojo/ 001

" E eu, verdadeiramente eu sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda."
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Refugo/034

Agi sempre para dentro... Nunca toquei na vida... Sempre que esboçava um gesto, acabava-o em sonho, heroicamente...Uma espada pesa mais que a ideia de uma espada... Comandei grandes exércitos — venci grandes batalhas, gozei grandes derrotas — tudo dentro de mim... 
Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes...Eu nunca tive noiva real...Nunca soube como se amava...Apenas soube como se sonhava amar...Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha...Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia...Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando.

Refugo/033

Pastoral de Pedro

Não sei onde te vi nem quando. Não sei se foi num quadro ou se foi no campo real, ao pé de árvores e ervas contemporâneas do corpo; foi num quadro talvez, tão idílica e legível é a memória que de ti conservo. Nem sei quando isto(se) passou, ou se se passou realmente - porque pode ser que nem em quadro eu te visse -, mas sei com todo o sentimento da minha inteligência que esse foi o momento mais calmo da minha vida. 
Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi manso e enorme, calmos pelo risco largo da estrada. Desde longe - parece-me - eu os vi, e viestes até mim e passastes. Pareceste não reparar na minha presença. Ias lenta e guardadora descuidada do boi grande. O teu olhar esquecera-se de lembrar e tinha uma grande clareira de vida de alma; abandonara-te a consciência de ti própria. Nesse momento nada mais eras do que um(...) 

Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os campos são eternos.  
Chamam bíblicas às pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos bíblicos deviam ter sido. 

É no recorte passageiro da tua figura anónima que eu ponho toda a evocação dos campos, e a calma toda que eu nunca tive chega-me à alma quando penso em ti. O teu andar tinha um balouçar leve, um ondular incerto, em cada gesto teu pousava uma ave tinhas trepadeiras invisíveis enroscadas no do teu busto. O teu silêncio - era o cair da tarde, e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas encostas pálidas da hora - o teu silêncio era o canto do último pegureiro que, por esquecido de uma écloga nunca escrita de Virgílio, ficou eternamente encantado, e eterna nos campos, silhueta. Era possível que estivesses sorrindo; para ti apenas, para a tua alma, vendo-te a ti na tua ideia, a
sorrir. Mas os teus lábios eram calmos como o recorte dos montes; e o gesto, que deslembro, de tuas mãos rústicas engrinaldado com flores do campo.
Foi num quadro, sim, que te vi. Mas donde me vem esta ideia de que te vi aproximares-te e passares por mim e eu seguir, não me voltando para trás por te estar vendo sempre e ainda? Estaca o Tempo para te deixar passar, e eu erro-te quando te quero colocar na vida - ou na semelhança da vida."

Refugo/032

“Um azul esbranquiçado de verde nocturno punha em recorte castanho negro,vagamente aureolado de cinzento amarelecido,a irregularidade fria dos edifícios que estavam de encontro ao horizonte do estio.
Dominámos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.”

Refugo/031

“São cetins prolixos, púrpuras perplexas e os impérios seguiram o seu rumo de morte entre embandeiramentos exóticos de ruas largas e luxúrias de dosséis sobre paragens. Pálios passaram. Havia ruas foscas ou limpas nos decursos das procissões’. Faiscavam frio as armas levadas nas dolorosas lentidões das inúteis marchas. Esquecidos os jardins nos subúrbios e as águas nos repuxos mera continuação do deixado, caindo risos longínquos entre lembranças de luzes, não que as estátuas nas áleas falassem, nem que se perdessem, entre amarelos em sequência, os tons do outono orlando túmulos. As alabardas esquinas para épocas pomposas, verde-negro, roxo-velho e granada o tom das roupagens; praças desertas no meio das esquivanças; e nunca mais por entre canteiros onde se passa passearão as sombras que deixaram os contornos dos aquedutos. 
Tanto os tambores, os tambores atroaram a trémula hora.”

Refugo/030

“Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó - chora-me na alma este desejo.
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.”

Refugo/029

“Não me encontro um sentido... A vida pesa... Toda a emoção é de mais para mim... O meu coração é um privilégio de Deus... A que cortejos pertenci, que um cansaço de não sei que pompas embala a minha saudade? E que pálios? que sequências de estrelas? que lírios? que flâmulas? Que vitrais? Por que mistério à sombra de árvores passaram as melhores fantasias, que neste mundo tanto se recordam das águas, dos ciprestes e dos buxos e não encontram pálios para os seus préstitos senão entre consequências de se abster? 

Caleidoscópio 

Não fales... Aconteces demasiado... Tenho pena de te estar vendo... Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa... A vida é isto. Os outros abandonaram os remos... Não há já disciplina nas cortes... Foram-se os cavaleiros com a manhã e o som das lanças... Teus castelos ficaram esperando estar desertos... Nenhum vento abandonou os renques das árvores ao cimo... Pórticos inúteis, baixelas guardadas, prenúncios de profecias - isso pertence aos crepúsculos prosternados nos templos e não agora, ao encontrarmo-nos, porque não há razões para tílias dando sombra senão teus dedos e o seu gesto tardio... Razão de sobra para territórios remotos... Tratados feitos por vitrais de reis... Lírios de quadros religiosos... Por quem espera o séquito?... Por onde se ergueu a águia perdida?”

Refugo/028

“De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão subtil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir.
Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver - tudo irresponsavelmente.
Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo, deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (à vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais.
Milénios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis - não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor - tudo morto, minha ama, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado... Dáme que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem...”

Refugo/027

“O povo é bom tipo .

O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.
Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.
Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.
Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder.
Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.”

Refugo/026

“Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge,marcam o homem superior.”

Refugo/025

"Tornar puramente literária a receptividade dos sentidos, e as emoções, quando acaso inferiorizem, convertê-las em matéria aparecida para com elas estátuas se esculpirem de palavras fluidas e lambentes...”

Refugo/024

"A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra. 
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor. 
Meu destino é a decadência. 
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca  sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas."

Refugo/023

"Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito - como através dele compreender’? Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro. Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer - eu sou eu? Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não.Possui outra sensação.Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?  Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer te. Mas do que comes não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?"

Refugo/022

"À minha incapacidade de viver crismei de génio, à minha cobardia cobri-a de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num altar de papelão pintado para parecer mármore.
Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me."

Refugo/021

"Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.
Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais."

Refugo/020

"Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais.Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho.
Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria vida moral, que me são só apensos - desleixo a ideia do dever mas também a ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos entre as árvores da quinta de Ninguém."