Resto 334

" Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhe vou fazer sentir... Brinco com as minhas sensações como uma princesa cheia de tédio com os seus grandes gatos prontos e cruéis...
Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam a passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objectos espirituais que lhe vão vincar certos gestos.

Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que supomos estar tendo; afirmações absurdas feitas com cinzas de outras que já de si não significam nada...

...E é lamentável, está claro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime... Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido... Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos...Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada... Acho que a coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser rainha dum naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha casa....Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos...No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós.
-Isso é tão verdadeiro...Que tarde que é sempre!...Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois... Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna...Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos...Os verbos! Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costuma dizer-me que procurava o micróbio da significação...Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si...Um revólver e ...

As criaturas que estavam à mesa de chá não tiveram com certeza esta conversa. Mas estavam tão alinhadas e bem vestidas que era pena que não falassem assim... Por isso escrevi esta conversa para elas terem tido...As atitudes, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e sorrisos nos momentos de conversa que abrem intervalos no sentimento de existirmos, disseram nitidamente o que fielmente finjo que reporto...Quando eles um dia forem ambos e sem dúvida casados cada um para o seu lado - em intentos de mais juntos, para poderem casar um com o outro -, se eles por acaso olharem para estas páginas, acredito que reconhecerão o que nunca disseram e que não deixarão de me ser gratos por eu ter interpretado tão bem, não só o que eles são realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem sabiam que eram...
Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente disseram. Na conversa aparente que eles escutaram um ao outro faltavam tantas coisas que (...)- faltou o perfume da hora, o aroma do chá, a significação para o caso do ramo de (...) que ela tinha ao peito. Tudo isso, que assim formou parte da conversa, eles se esqueceram de dizer...Mas tudo isto lá estava e o que eu faço é, mais do que um trabalho de historiador. Reconstruo, completando... e isso me servirá de desculpa junto deles, de ter estado tão fixamente a escutar-lhes o que não diziam e não queriam dizer."