"Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstracto observar era uma negação ainda.
Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida, em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e (a) igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido parados da civilização ao movimento invisível da subida do dia.
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo – contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade."