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Resto/476e

" Por isso conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda. Não há baixo impulso, como não há nobre intuito que me não tenha sido relâmpago na
alma; e eu sei com que gestos cada um se mostra. Sob as máscaras que as más ideias usam, de boas ou indiferentes, mesmo dentro de nós eu pelos gestos as conheço por quem são. Sei o que em nós se esforça por nos iludir. E assim à maioria das pessoas que vejo conheço melhor do que eles a si próprios. Aplico-me muitas vezes a sondá-los, porque assim os torno meus. Conquisto o psiquismo que explico, porque para mim sonhar é possuir. E assim se vê como é natural que eu, sonhador que sou, seja o analítico que me reconheço.
Entre as poucas coisas que às vezes me apraz ler, destaco, por isso, as peças de teatro. Todos os dias se passam peças em mim, e eu conheço a fundo como é que se projeta uma alma na projeção de Mercator, planamente. Entretenho-me pouco, aliás, com isto; tão constantes, vulgares e enormes são os erros dos dramaturgos. Nunca nenhum drama me contentou. Conhecendo a psicologia humana com uma nitidez de relâmpago, que sonda todos os recantos com um só olhar, a grosseira análise e construção dos dramatistas fere-me, e o pouco que leio neste género desgosta-me como um borrão de tinta atravessado na escrita."

Resto 412/b

"A que propósito relembro? O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das províncias onde estive como os que moram; tábua a tábua do soalho, oscilo o oscilar de outrem, nas vastas salas onde nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação – a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei."

Resto 302/a

" Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento, pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti-me imediatamente a inutilidade da vida. Ver,sentir,lembrar,esquecer - tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo."