" Quando vivemos constantemente no abstracto – seja o abstracto do pensamento, seja o da sensação pensada –, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.
Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja de alguém, o saber que ele está doente, ou que morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta, apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão directa do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.
Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital, para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo há muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre com o que suponho ser saudade. A única sensação que recebi, de positiva e de clara, foi a da maçada que forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a alternativa irónica de, não tendo paciência para a visita, ficar arrependido de a não fazer."