Resto/469a

"Sentimento apocalíptico

Pensando que cada passo na minha vida era um contacto com o horror do Novo, e que cada nova pessoa que eu conhecia era um novo fragmento vivo do desconhecido que eu punha em cima da minha mesa para quotidiana meditação apavorada – decidi abster-me de tudo, não avançar para nada, reduzir a acção ao mínimo, furtar-me o mais possível a que eu fosse encontrado quer pelos homens, quer pelos
acontecimentos, requintar sobre a abstinência e pôr a abdicação a bizantino. Tanto o viver me apavora e me tortura.
Decidir-me, finalizar qualquer coisa, sair do duvidoso e do obscuro, são coisas (que) se me figuram catástrofes, cataclismos universais.
Sinto a vida um apocalipse e cataclismo. Dia a dia em mim aumenta a incompetência para sequer esboçar gestos, para me conceber sequer em situações claras de realidade.
A presença dos outros – tão inesperada de alma a todo o momento – dia a dia me é mais dolorosa e angustiante. Falar com os outros percorre-me de arrepios. Se mostram interesse por mim, fujo. Se me
olham, estremeço. Se (..)
Estou numa defesa perpétua. Doo-me a vida e a outros. Não posso fitar a realidade frente a frente. O próprio sol já me desanima e me desola. Só à noite, e à noite a sós comigo, alheio, esquecido, perdido – sem liga com a realidade nem parte com a utilidade – me encontro e me dou conforto.
Tenho frio da vida. Tudo é caves húmidas e catacumbas sem luz na minha existência. Sou a grande derrota do último exército que sustinha o último império. Saibo-me a fim de uma civilização antiga e dominadora. Estou só e abandonado, eu que como que costumei mandar outros. Estou sem amigo, sem guia, eu a quem sempre outros guiaram..."