Resto 91

" Se a nossa vida fosse um eterno estar à janela, se assim ficássemos, como um fumo parado, sempre, tendo sempre o mesmo momento de crepúsculo dolorindo a curva dos montes. Se assim ficássemos para além de sempre! Se ao menos, aquém da imposibilidade, assim pudéssemos quedar-nos, sem que cometêssemos uma acção, sem que os lábios pálidos pecassem mais palavras.
Olha como vai escurecendo!...O sossego positivo de tudo enche-me de raiva, de qualquer coisa que é o travo no sabor da aspiração.Doi-me a alma..."

Resto 90*/b

" Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular - jardim público ao quase crepúsculo -, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som das crianças alheias..."

Resto 90/a

" Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu desejaria -, que posso presumir da minha vida de amanha senão o que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto."

Resto 89

" Há momentos em que tudo cansa, até o que nos repousaria. O que nos cansa porque nos cansa; o que nos repousaria porque a ideia de o obter nos cansa. Há abatimentos da alma abaixo de toda a angústia e de toda a dor;creio que os não conhecem senão os que se furtam às angústias e às dores humanas; e têm a diplomacia consigo mesmos para se esquivar ao próprio tédio.Reduzindo-se assim, a seres couraçados contra o mundo, não admira que, em certa altura da sua consciência de si mesmos, lhes pese de repente o vulto inteiro da couraça, e a vida lhes seja uma angústia às avessas, uma dor perdida.Estou em um desses momentos, e escrevo estas linhas como quem quer ao menos saber que vive...Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inacção. Nem olho o dia,para ver o que ele tem que me distraia de mim, e, escrevendo-o eu aqui em descrição, tape com palavras a xícara vazia do meu não me querer."

Resto 88/b

"Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecr, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se falasse.
Ah! que manhã  é esta, que me desperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura dela!...Que manhã esta mágoa! E que sombras se afastam? E que mistérios se deram?Nada: o som do primeiro eléctrico como um fósforo que vai iluminando a escuridão da alma, e os passos altos do meu primeiro transeunte que são a realidade concreta a dizer-me, com voz de amigo, que não esteja assim."

Resto 88/a

" Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado;nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travam uma batalha em que o meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum."

Resto 87

"O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente. Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais póximas de si do que os factos, e através das quais os factos, alterados para de acordo com elas, lhe chegam."

Resto 86

" Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer coisa que me debruço. se vejo a vida passar, sonho qualquer coisa.
De alguém, alguém disse que para ele as figuras dos sonhos tinham o mesmo relevo e recorte que as figuras da vida. Para mim, embora compreendesse que se me aplicasse frase semelhante, não aceitaria. As figuras dos sonhos não são para mim iguais às da vida. São paralelas. Cada vida - a dos sonhos e a do mundo - tem uma realidade igual e própria, mas diferente. Como as coisas próximas es as coisas remotas. As figuras dos sonhos estão mais proximas de mim, mas..."

Resto 85/b

" Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste. O som das ondas à noite é um som de noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e perdemos e , depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não haviamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio à beira-mar...Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja?Quem sabe o que é para si mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.
Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto,chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio nocturno à beira-mar."

Resto 85*/a

" Todos os pensamentos, que têm feito viver os homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada á beira-mar.
Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempo. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse - de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar."

Resto 84*

" Viver é ser outro. Nem sentir é possivel se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos."

Resto 83/b

" Criei-me eco e abismo.Multipliquei-me aprofundando-me.
O mais pequeno episódio - uma alteração saindo da luz, a queda enrolada, de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro com os passos de quem a diz juntos aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar - todas estas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade.
Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida.Vivo de impressão que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu."

Resto 83/a

"Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da conciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.
A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida.
E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de consciência, em que passei a viver o que sentia, tornava-me mais quotidiana, mais epidérmica, mais titilante a maneira como sentia."

Resto 82/f

"O mal da vida, a doença de ser inconsciente, entram com o meu próprio corpo e perturba-me.Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas...Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver outra gente, real também, na vida!
Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum excepto Deus."

Resto 82/e

"Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas - passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais  pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar que  estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar  eterno(embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco  por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar  inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os  gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde,por um tempo vertical, consubstanciado com a direcção das minhas saudades e dos meus devaneios! 
Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o  rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus...e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço intimo que entretém essas pobres realidades...Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... E cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo."

Resto 82/d

"Ah,não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,...isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secúndárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina de minha visionação....Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão em mim...tudo isto, que nunca passou de um sonho, está gravada em minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los,passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida real morta que fito, solene no seu caixão."

Resto 82/c

"A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez - com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo - mas tenho pena de não o fazer... e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas própria, reais, definidas e imperfeitas."

Resto 82/b

"Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei muita atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser....Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar.À vida nunca pedi senão que pasasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas própria paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam - quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisagem - uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar."

Resto 82/a

"Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida.Nunca tive outra preocupação verdadeira se não a minha vida interior.As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu movimento."

Resto/81

"O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção.Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, válido para nós na proporção em que o que pensamos válido, depende de nós a valorização. O sonhador é um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu espírito do mesmo modo que as da realidade.Que me importa que o papel-moeda da minha alma nunca seja convertível em ouro, se não há ouro nunca na alquimia factícia da vida? Depois de todos nós vem o dilúvio, mas é só depois de todos nós"

Resto 80/c

"...por mais que meditemos qualquer coisa,e, meditando-a, a transformemos, nunca a transformamos em qualquer coisa que não seja substância de meditação. Chega-nos então a ânsia da vida, de conhecer sem ser com o conhecimento, de meditar só com os sentidos ou pensar de um modo táctil ou sensível, de dentro do objecto pensado, como se fôssemos água e ele esponja.Então também temos a nossa noite, e o cansaço de todas as emoções aprofunda-se com serem emoções do pensamento, já de si profundas.Mas é uma noite sem repouso, sem luar, sem estrelas, uma noite como se tudo houvesse sido virado do avesso - o infinito tornado interior e apertado, o dia feito forro negro de um trajo desconhecido."

Resto 80/b

"Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo,um tudo ou nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito.Numa pedra dorme-se cósmicamente."

Resto 80/a

"Reconhecer a realidade como uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil.
A vida contemplativa, para sequer existir, tem que considerar os acidentes objectivos como premissas dispersas de uma conclusão inantigível; mas tem ao mesmo tempo que considerar as contigências do sonho como em certo modo dignas daquela atenção a elas, pela qual nos tornamos contemplativos."

Resto 79

" Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre orfão abandonado nas ruas das Sensações, tritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia...Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...Às vezes penso isto e choro com  alegria a pensar que o posso pensar...Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio...Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para filho adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos."

Resto 78/b

" Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade alheios conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos deuses e assim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede."

Resto 78/a

" A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la iamos; tudo o mais é sistema e arredores. Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreender-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende."

Resto 77

" Penso se tudo na vida não será a degeneração de tudo. O ser não será uma aproximação - uma véspera, ou uns arredores...
Vivemos um entreacto com orquestra."

Resto 76

" Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas de tantas criaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto incoerente de sentimentos mistos.
Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má - e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má -, sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento.E como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são.
E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas,eu que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valera, pois, ou a obra completa,ainda que má, que em todo o caso é obra;ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir."

Resto 75/c

" Consta-se que Sigismundo ,Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, «Sou Rei de Roma, e acima da gramática». E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo «super-grammaticam». Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se."

Resto 75/b

"A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em  intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi « Sou ». Se quiser dizer que existo como alma separada, direi « Sou eu ». Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo « ser » senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi « Sou-me ». Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?"

Resto 75/a

" Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido,a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. E certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros. 
Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois principios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso - ; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei."

Resto 74/b

" Vista de perto; toda a gente é monotonamente diversa.Dizia Vieira que Frei Luís de Sousa escrevia "o comum com singularidade".Esta gente é singular com comunidade, às avessas do estilo da Vida do Arcebispo. Tudo isto me faz pena,sendo-me todavia indiferente.Vim parar aqui sem razão,como tudo na vida.
Do lado do oriente,entrevista,a cidade ergue-se quase  a  prumo  falso, assalta estaticamente o Castelo.O sol pálido molha de um aureolar vago essa mole súbita de casas que para aqui o oculta.O céu é de um azul humidamente esbranquiçado.A chuva de ontem talvez se repita hoje,mas mais branda.O vento parece leste, talvez porque aqui mesmo,de repente, cheira vagamente ao maduro  e  verde  do  mercado  próximo.Do lado oriental da Praça há mais forasteiros que do outro.Como descargas alcatifadas, as portas onduladas descem para cima; não sei porquê, é assim a frase que me transmite aquele som.
É talvez porque fazem mais esse som ao descer, porém agora  sobem.Tudo se explica.
De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante.Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam - só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha.
Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente."

Resto 74*/a

" Remoinhos,redemoinhos, na futilidade fluida da vida! Na grande praça ao centro da cidade, a água sobriamente multicolor da gente passa, desvia-se, faz poças, abre-se em riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem desatentamente, e construo em mim essa imagem áquea que , melhor que qualquer outra, e porque pensei que viria chuva, se ajusta a este incerto movimentos.
Ao escrever esta última frase, que para mim exactamente diz o que define, pensei que seria útil pôr no fim do meu livro,quando o publicar, abaixo das "Errata"  umas  "Não-Errata",e dizer:a frase "a este  incerto movimentos",na página tal, é assim mesmo, com as vozes adjectivas no singular e o substantivo no plural.Mas que tem isto com aquilo em que estava pensando? Nada, e por isso me deixo pensá-lo.
À roda dos meios da praça, como caixas de fósforos móveis,  grandes e amarelas,  em  que uma criança espetasse um fósforo queimado inclinado, para fazer de mau mastro,os carros eléctricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam a ferro alto.À roda da estátua central as pombas são migalhas  pretas que se mexem, como se lhes desse um vento espalhador. Dão passinhos, gordas sobre pés pequenos. E são sombras, sombras..."

Resto 73

" Pobre da sensibilidade que depende de um pequeno movimento do ar para o conseguimento, ainda que episódico, da sua tranquilidade! Mas assim é toda a sensibilidade humana...Posso pensar em dormir. Posso sonhar de sonhar. Vejo mais claro a objectividade de tudo. Uso com mais conforto o sentimento externo da vida. E tudo isto, efectivamente, porque, ao chegar quase à esquina, um virar no ar da brisa me alegra a superficie da pele.
Tudo quanto amamos ou perdemos - coisas, seres, significações - nos roça a pele e assim nos chega à alma, e o episódio não é, em Deus, mais que a brisa que me não trouxe nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o poder perder tudo esplendidamente."

Resto 71/c

" Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são o refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio...Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, que sonho tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nitidas.Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela."

Resto 71/b

" Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me."

Resto 71/a

" Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor...Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar."

Resto 70/b

" Tanta inconsequência em querer bastarme! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job, «Minha alma está cansada de minha vida! »"

Resto 70/a

" Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemnte.Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro."

Resto 69/d

"Parece uma constipação da alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são os lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se conscientemnte, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra direcção, a porta onde se deve entrar."

Resto 69/b

"Olha-se mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim."

Resto 69/a

" Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem."

Resto 67/d

"Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Isto não me parece impossivel. Os sonhos também serão talvez ainda outra dimensão em que vivemos, ou um cruzamento de duas dimensões; como um corpo vive na altura, na largura e no comprimento, os nossos sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no eu e no espaço.No espaço pela sua representação visível; no ideal pela sua apresentação de outro género que a da matéria; no eu pela sua íntima dimensão de nossos. O próprio Eu, o de cada um de nós ,é talvez uma dimensão divina. Tudo isto é complexo e a seu tempo, sem dúvida, será determinado. Os sonhadores actuais são talvez os grandes percursores da ciência final do futuro."

Resto 67/c

"Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Talvez a investigação científica do futuro venha a descobrir que tudo são dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso.Numa dimensão viveremos corpo; na outra viveremos alma. E há talvez outras dimensões onde vivemos outras coisas igualmente reais de nós."

Resto 67/b

" Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão, para uso auto-analítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. É talvez preciso arranjar a ideia de um instrumento de precisão, materialmente vendo essa ideia, para poder proceder a uma rigorosa análise íntima. E naturalmente será necessário reduzir também o espírito a uma espécie de matéria real com uma espécie de espaço em que existe.Depende tudo isso do aguçamento extremo das nossas sensações interiores, que, levadas até onde podem ser, sem dúvida revelarão, ou criarão, em nós um espaço real como o espaço que há onde as coisas da matéria estão, e que, aliás, é irreal como coisa."

Resto 67/a

"Penso às vezes com um agrado (em bissecção) na possibilidade futura de uma geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude para com a sua consciência da sua própria alma."

Resto 66



"Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso de automóveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me um carro eléctrico e a espantosa faculdade de abstracção que tenho e cultivo. 
Num carro eléctrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e  instantânea de análise, separar a ideia de carro da ideia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade dele. E, cansado, se acaso quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a ideia para o Puro Imitar da Velocidade e a meu bom prazer aumentá-la ou diminuí-la, alargá-la para além de todas as velocidades possíveis de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente - perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e me despersonaliza. 
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos. 



Um poente é um fenómeno intelectual."

Resto 64

"No ALTO ERMO DOS MONTES naturais temos, quando chegamos, a sensação do previlégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob a sola dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que o diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes.Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Éolo o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento.Ele tem por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales.O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais (que) para quem ali sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida.E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um um sol que já nem está no poente."

Resto 63<>64

" Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo.Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim, cresce a erva, chove na erva que cresceu ou vai crescer;erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditadas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suiça achatada.Sai um navio pequeno - vapor de carga preto-dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade eterna, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz."

Resto 63/b

" E é por isso que o meu estudo atento e constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la.A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito."

Resto 63/a

" Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pesamento.
Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar."

Resto 62/c

" É um humanitarismo directo, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os obres diabos homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui? 
Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto.E, como alguém abstractamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.
Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo.Tudo isto é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes - tudo isto é uma mesma inocência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão invisível de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe."

Resto 62/b

" Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com a passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente. dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo."

Resto 62/a

"Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta.
Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas de um homem que descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva da mão direita.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.
Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.   
A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma maia natural, enquanto dorme.Entre matar quem dorme e uma criança não conheço diferença que se sinta."

Resto/061

Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma coisa que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma
planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido. 
Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.

Resto 60/b

" A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência.Há inteligências inconscientes - brolhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofia - que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções."

Resto 60/a

"O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões - a perda dela, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perder-las a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim."

Resto 59

" Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização - uma modificação anónima da natureza. As plantas estão ali, mas não há ruas - ruas. Crescem árvores, mas há bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre gente....Assim, na cidade, regados mas úteis, os jardins são para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e das flores não têm senão espaço para não o ter, lugar para dele não sair, e a beleza própria sem vida que perence a ela.
Mas há dias em que esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cómica."

Resto 58/b

" A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado...O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro. Manufacturamos realidades.A matéria-prima continua sendo a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma.Uma mesa de pinho é pinho mas também mesa...Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é, com efeito, já outro sentimento.
Não sei que efeito subtil de luz, ou ruído vago, ou memória de perfume ou música,tangida por não sei que influência externa, me  trouxe de repente,em pleno ir pela rua, estas divagações que registo sem pressa,ao sentar-me no café, distraidamente.Não sei  onde ia conduzir os pensamentos,ou onde preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro húmido e quente, triste sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência.E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar-,o papel branco de embrulho de sanduíches,que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito. Reclino-me.A tarde cai monótona e sem  chuva,  num tom de luz desalentado e incerto...E deixo de escrever porque deixo de escrever "

Resto 58/a

" Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do desconhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam felizes."

Resto 57

" Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência nunca certos com o que somos ou com o que supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso como vozes na noite.
Estas páginas que registo com uma clareza que dura para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou?
Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa. 
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus. Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
Releio, sim estas páginas que representam horas pobre, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever."

Resto 56

Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vómito para aliviar a vontade de vomitar.
Um dos meus passeios predilectos, nas manhãs em que temo a banalidade do dia que vai seguir como quem teme a cadeia, é o de seguir lentamente pelas ruas fora, antes da abertura das lojas e dos armazéns, e ouvir os farrapos de frases que os grupos de raparigas, de rapazes, e de uns com outras, deixam cair, como esmolas da ironia, na escola invisível da minha meditação aberta. 
E é sempre a mesma sucessão das mesmas frases...("E então ela disse..." e o tom diz da intriga dela. "Se não foi ele, foste tu... " e a voz que responde ergue-se no protesto que já não oiço. "Disseste, sim senhor, disseste..." e a voz da costureira afirma estridentemente "Minha mãe diz que não quer... " "Eu?" e o pasmo do rapaz que traz o lunch embrulhado em papel-manteiga não me convence, nem deve convencer a loura suja. "Se calhar era. . . " e o riso de três das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que . "E então pus-me mesmo diante do gajo, e ali mesmo na cara dele - na cara dele, hein, ó Zé. .." e o pobre diabo mente, pois o chefe do escritório - sei pela voz que o outro contendor era chefe do escritório que desconheço – não lhe recebeu na arena entre as secretárias o gesto de gladiador de palhinhas. "... E então eu fui fumar para a retrete..." ri o pequeno de fundilhos escuros. Outros, que passam sós ou juntos, não falam, ou falam e eu não oiço, mas as vozes todas são-me claras por uma transparência intuitiva e rota. Não ouso dizer - não ouso dizê-lo a mim mesmo em escrita, ainda que logo a cortasse - o que tenho visto nos olhares casuais, na sua direcção involuntária e baixa, nos seus atravessamentos sujos. Não ouso porque, quando se provoca o vómito, é preciso provocar só um. "O gajo estava tão grosso que nem via a escada." Ergo a cabeça. Este rapazote, ao menos, descreve. E esta gente quando descreve é melhor do que quando sente, porque por descrever esquece-se de si. Passa-me a náusea. Vejo o gajo. Vejo-o fotograficamente. Até o calão inocente me anima. Bendito ar que me dá na fronte - o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a escada - talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
A intriga, a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são... Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos,das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados das sensações.

Resto 55

" É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.

Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento a nossa.
Fogos-fátuos que a nossa podridão geral, são ao menos luz nas nossas trevas.
Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas,é  heráldico como o são descendentes de heróis longínquos.   
Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim. 
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em que construía.
Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles...Esse sonho falso, esse ódio fraco não é senão o pedestal tosco e sujo da terra em que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue, escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável nimba vagamente de segredo.

Benditos os que não confiam a vida a ninguém."

Resto 57/a

" Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência nunca certos com o que somos ou com o que supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos.Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário.Todo o mundo é confuso como vozes na noite."

Resto 53

" Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho, porque são todos sonhos. Mudem-me os deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.Assim cada um se sonha..."

Resto 52/d

"Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura humidamente amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedragulhos.
Assim sou. Quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na minha alma, fico de repente parado, esquecido, no começo da espiral da escada profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o aglomerado difuso dos telhados."

Resto 52/c

"Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa...
Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de celulas - mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos, estranhas conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura.
Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo."

Resto 52/b

"Esta mesa ...é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros...a minha impressão desta mesa...terá que ser composta das noções de que ela é de madeira...e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se reflectem, nela se inserem, e a transformam...É a propria cor que lhe foi dada, o desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem - tudo isto repare-se lhe veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora, que é a personalidade.
Acho, pois que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição."

Resto 52*/a

" O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora.
Cada coisa é a intersecção de três linhas, e essas três linhas formam essa coisa : uma quantidade de matéria, o modo como interpretamo, e* o ambiente em que está."

Resto 50

" Por mais que pertença, por alma, à linhagem dos românticos, não encontro repouso senão na leitura dos clássicos. A sua mesma estreiteza, através da qual a clareza se exprime, me conforta não sei de quê. Colho neles uma impressão alacre de vida larga, que contempla amplos espaços sem os percorrer. Os mesmos deuses pagãos repousam do mistério.
A análise sobrecuriosa das sensações - por vezes das sensações que supomos ter -, a identificação do coração com a paisagem, a revelação anatómica dos nervos todos, o uso do desejo como vontade e da aspiração como pensamento -todas estas coisas me são demasiado familiares para que em outrem me tragam novidade, ou me dêem sossego. Sempre que as sinto, desejaria, exactamente porque as sinto, estar sentindo outra coisa. E, quando leio um clássico, essa outra coisa é-me dada.
Confesso-o sem rebuço nem vergonha... Não há trecho de Chateaubriand ou canto de Lamartine - trechos que tantas vezes parecem ser a voz do que eu penso, cantos que tanta vez parecem ser-me ditos para conhecer – que me enleve e me erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma ou outra ode daqueles nossos poucos clássicos que seguiram deveras a Horácio.
Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas. 
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmaras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.  Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe
do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a
esmola extrema da sua desolação."

Resto 48

" É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se sofresse por não ter pão.
"Não se pode comer um bolo sem o perder" "

Resto/46

O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia, porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, húmida ainda do pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.
Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nula, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por contraste o mistério de tudo em grande negrume.
Mas, de repente, em contrário do meu propósito literário íntimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida, em um Norte de rio menor, com juncais tristes e sem cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão que imagino.
Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e angústias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e reentram em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as hastes verdenegras dos juncos, por onde se não pode andar.
A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e ali arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa, por detrás da qual se divisa - grande e abandonado rio! - a outra margem verdadeira, deitada na distância sem relevo.
Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contraditória do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco se imergiam no conjunto abolido do céu.
E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. O céu negro, apertando-se, desceu mais baixo sobre o Sul.

Resto 45

" Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser natural, e é o natural que é estranho.Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente.A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. O que gozei destes campos vastos, gozei-o porque aqui não vivo. Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido....A civilização é uma educação de natureza. O artificial é o caminho para uma apreciação do natural. O que é preciso, porém é que nunca tomemos o artificial por natural. É na harmonia entre o natural e o artificial que consiste a naturalidade da alma humana superior."

Resto 43

" Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar."

Resto 41

«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais distinada a reconstruir consteladamente o universo.«Sou do tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão...Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria....Mas recolho-me e abrando.«Sou do tamanho do que vejo!» E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer."

Resto 40

" Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores.Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que o vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores."

Resto 38/c

" Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as celulas do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo? E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia - um dia sem tempo nem substância - se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou (...)do não-ser."

Resto 38/b

" O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos- a da incarnação disforme de não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos. "

Resto 38*/a

" Há um cansaço da inteligência abstracta, e é mais horroroso dos cansaços.Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma.
Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida,todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastan tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado "

Resto 37

"Não compreendo senão como uma espécie de falta de asseio esta inerte permanência em que jazo da minha mesma e igual vida, ficada como pó ou porcaria na superfície de nunca mudar.   
Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.   
Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento.
Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. 
São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.
Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passeio o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia senão estes breves comentários que faço a propósito dela. Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana da minha escritura com a morte.
Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba, murcha desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplausos, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como da vida, pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças, netos do Destino enteados de Deus, que casou com a Noite Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.

Partir da Rua dos Douradores para o impossível...Erguer-me da carteira para o Ignoto...Mas isto interseccionado com a Razão - o Grande Livro que diz que fomos."

Resto 36*

"O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que [se] destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou.
Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem sensação, o traje de alegria natural de que usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimento o ar pardo e mau.
Abandonar todos os deveres, ainda os que nos não exigem, repudiar todos os lares, ainda os que não foram nossos, viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas... Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa da vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamento, sensação sem si-mesma, por estrada contornando montanhas, por vales sumidos entre encostas íngremes, longínquo, imerso e fatal...Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...
Um sopro leve de vento, que por detrás da janela não sinto, rasga em desnivelamentos aéreos a queda rectilínea da chuva. Clareia qualquer parte do céu que não vejo. Noto-o porque, por detrás dos vidros meio-limpos da janela fronteira, já vejo vagamente o calendário na parede lá dentro, que até agora não via.
Esqueço. Não vejo, sem pensar.
Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de diamantes mínimos, como se, no alto, qualquer coisa como uma grande toalha se sacudisse azulmente dessas migalhinhas. Sente-se que parte do céu está já aberta. Vê-se, através da janela fronteira, o calendário mais nitidamente. Tem uma cara de mulher, e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta dentífrica é a mais conhecida de todas.
Mas em que pensava eu antes de me perder a ver? Não sei. Vontade? Esforço? Vida? Com um grande avanço de luz sente-se que o céu é já quase todo azul. Mas não há sossego - ah, nem o haverá nunca! - no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sótão da casa alheia. Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter..."

Resto 35

" O essencial do sono é o acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela"

Resto 34 /e

" Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida.Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade.Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós.

Resto 34/d

" Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humana com que possa defini-lo."

Resto 34/c

"Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara."

Resto 34/b

"Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, porque agi dele para fora, ou de um peso de circunstância que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento  de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu."

Resto 34/a

"...ergo a cabeça da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de locura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou."

Resto 31

"Mas também há momentos,  e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que ás coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe."

Resto 30/b

" E, perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior me sabe a frivolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais originais e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais."

Resto 30/a

"...um desdém cheio de tédio por eles, que desconhecem que a única realidade para cada um é a sua própria alma, e o resto-o mundo exterior e os outros-um pesadelo inestéctico, como um resultado nos sonhos de uma indigestão de espírito."

Resto 28/b

"...que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação."

Resto 28/a

"Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque (que) se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar."

Resto 26

O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite.Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra,que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho. Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstracto, feito de negações nocturnas.
Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafisico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana bóiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espectáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.

Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento - tudo que não fosse a vida... 
E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.

Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me
matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece - não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez.