Resto 203

"Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.
A rua franziu-se da luz intensa e pálido, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamento ecoantes... A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente - tudo ao mesmo tempo -, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminuiu como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiamente. Nova luz, de um amarelado rápido, toda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trémulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedidad zangada, a trovoada começava a aqui não estar...Uma súbita luz formidável estilhaçou-se. Estacou dentro dos cérebros e dos quartos. Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo."

Resto/202

"Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel às promessas interiores. Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença aquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.
Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis.
Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a lembrança de infância de um teatro em que o cenário azulado e lunar representava o terraço de um palácio impossível. Havia, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida, trazia para real de febre esse cenário dado.
O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco não me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na paisagem lembrada sai-me hoje dos versos de Verlaine e de Pessanha; não era a que deslembro, passada no palco vivo aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida, a mascarada imensa e lunar, o interlúdio de prata e azul findo.
Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao Leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade - bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura - infância, vivida a distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu presente – numa diagonal difusa, num espaço falso entre o que fui e o que sou." 

Resto 201

"Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel às promessas interiores. Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios,assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.
Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis."

Resto 200

" Todos os movimentos da sensibilidade, por agradáveis que sejam, são sempre interrupções de um estado, que não sei em que consiste, que é a vida íntima dessa própria sensibilidade. Não só as grandes preocupações, que nos distraem de nós, mas até as pequenas arrelias, perturbam uma quietação a que todos, sem saber, aspiramos.
Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém, é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes."

Resto 199*

" O poente está espalhado pelas nuvens soltas separadas que o céu todo tem. Reflexos de todas as cores, reflexos brandos, enchem as diversidades do ar alto, bóiam ausentes nas grandes mágoas da altura. Pelos cimos dos telhados erguidos, meio-cor, meio-sombras, os últimos raios lentos do sol indo-se tomam formas de cor que nem são suas nem das coisas em que pousam. Há um grande sossego acima do nível ruidoso da cidade que vai também sossegando. Tudo respira para além da cor e do som, num hausto fundo do mundo.
Nas casas coloridas que o sol não vê, as cores começam a ter tons de cinzento delas. Há frio nas diversidades dessas cores. Dorme uma pequena inquietação nos vales falsos das ruas. Dorme e sossega. E pouco a pouco, nas mais baixas das nuvens altas, começam os reflexos a ser de sombra; só naquela pequena nuvem, que paira águia branca acima de tudo, o sol conserva, de longe, o seu ouro rindo.
Tudo quanto tenho buscado na vida, eu mesmo o deixei por buscar.
Sou alguém que procure distraidamente o que, no sonho entre a busca, esqueceu já o que era. Torna-se mais real que a coisa buscada ausente o gesto real das mão visíveis que buscam, revolvendo, deslocando, assentando, e existem brancas e longas, com cinco dedos cada uma, exactamente.
Tudo o que tenho tido é como este céu alto e diversamente o mesmo, farrapos de nada tocados de uma luz distante, fragmentos de falsa vida que a morte doura de longe, com o seu sorriso triste de verdade inteira. Tudo quanto tenho tido, sim, tem sido o não ter sabido buscar, senhor feudal de pântanos à tarde,príncipe deserto de uma cidade de túmulos vazios.
Tudo quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso do que sou ou fui, tudo se perde de repente - nestes meus pensamentos e na perda súbita de luz da nuvem alta - o segredo, a verdade, a aventura, a aventura talvez, que houvesse em não sei quê que tem por baixo a vida. Tudo isso, como um sol que falta, é que me resta, e sobre os telhados altos, diversamente, a luz deixa escorregar as mão de queda, e sai à vista, na unidade dos telhados, a sombra íntima de tudo.
Vago pingo trémulo, clareira pequena ao longe a primeira estrela."

Resto 198

"Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que nunca penso, nem falo, nem ajo...Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu, em que me encarno de momento. Vou a falar e falo eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é vida. Não sei os gestos a actos nenhum real...
Nunca aprendi a existir.
Tudo o que quero consigo, logo que seja dentro de mim.
Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso...Para quê olhar para os crepúsculos se tenho em mim milhares de crepúsculos diversos - alguns dos quais que o não são - e se, além de os olhar dentro de mim, eu próprio os sou, por dentro?"

Resto 197

"Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas, compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar que o que somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos...Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o créscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo de sentimento - tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?"

Resto 196/b

" Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.
Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos...Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo,me extravio de mim.
Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida.
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou?Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?"

Resto 196/a

" Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.
Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis por mim escritos há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida,de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.
È frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem - trechos dos dezassete anos...E alguns deles têm o poder de expressão que não me lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui,pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou."

Resto 195

"...Por mim não tive convicções. Tive sempre impressões. Nunca poderia odiar uma terra em que eu houvesse visto um poente escandaloso.
Exteriorizar impressões é mais persuadirmo-nos de que as temos do que termo-las."

Resto 194

" Publicar-se - socialização de si próprio. Que ignóbil necessidade!
Mas ainda assim que afastada de um acto - o editor ganha, o tipógrafo produz. O mérito na incoerência ao menos.
Uma das preocupações maiores dos homens, atingida a idade lúcida, é talhar-se, agente e pensante, à imagem e semelhança do seu ideal. Posto que nenhum ideal encarna tanto como a inércia toda a lógica da nossa aristocracia de alma ante as ruidosidades e...exteriores modernas, o Inerte, o Inactivo, deve ser o nosso ideal. Fútil? Talvez. Mas isso só procupará como um mal aqueles para quem a futilidade é um atractivo."

Resto 193

"Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir.
Ao agir com outros, perco ao menos, uma coisa - que é agir só.
Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma realidade muito verdadeira.
A criança, que quer por força fazer a sua vontade, data de mais perto de Deus, porque quer existir.
A nossa vida de adultos reduz-se a dar esmolas aos outros. Vivemos todos de esmola alheia. Desperdiçamos a nossa personalidade em orgias de coexistência.
Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros.
Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob espécie da eternidade...Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.
Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio...evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o «mundo exterior» real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em mim?"

Resto192/c

" ...Não tenho saudades senão literariamente. Lembro-me da minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa externa e através de coisas externas; lembro só coisas externas...Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são as sensações minhas - estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humilde do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado ( tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua...É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu; Transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa."

Resto 192/b

" Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para contudo o que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando essses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo."

Resto 192/a

" Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal, porque não me incomodem,mas  acho que bastam os males naturais para mal que tenha de ver com o mundo. Vivemos todos neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viajem."

Resto 191

" Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!
Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna un sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora de antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquêce-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão. Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se
houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade."

Resto 189

Fluido, o abanono do dia finda entre púrpura exaustas. Ninguém me dirá quem sou, nem saberá quem fui. desci da montanha ignorada ao vale da ignoraria, e meus passos foram, na tarde lenta, vestígios deixados nas clareiras da floresta. Todos quantos amei me esqueceram na sombra. Ninguém soube do último barco. No correio não havia notícia da carta que ninguém haveria de escrever.
Tudo, porém, era falso. Não contaram histórias que outros houvessem contado, nem se sabe ao certo do que partiu outrora, na esperança do embarque falso, filho da bruma futura e da indecisão por vir. Tenho nome entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo."

Resto 188*

" Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que não o olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, preocupa-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam...como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre linhas fechadoras a casaria.
Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens...Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre...Nuvens...Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objectiva e subjectivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho...Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter silêncio do céu. Nuvens...continuam passando, continuam sempre pasando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito."

Resto 187

" Nem se sabe o que acaba do dia é connosco que finda em mágoa inútil, ou se o que somos é falso entre penumbras, e não há mais que um grande silêncio...Não se sabe nada, nem a memória resta das histórias de infância...A lâmpada votiva oscila incerta no templo onde já ninguém anda, estagnam os tanque ao sol das quintas desertas...Outros se debruçaram da mesma janela que os outros; dormem os que se esqueceram da má sombra, saudosos do sol que não tinham; e eu mesmo, que ouso sem gestos, acabarei sem remorsos, entre juncos ensopados...E através de tudo, como um silvo de angústia nua, sentirei a minha alma por detrás do devaneio - uivo fundo e puro, inútil no escuro do mundo."

Resto 186/c

" Meu coração doi-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpia, da insuficiência anónima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada da todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpias que um sol angular doura de fim não sei onde.
Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz - tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filososfias com que brincam, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono..."

Resto 186/b

"Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas. No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os reinos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os ceptros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja a porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos,todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que o vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos, de perto, faz cama a si mesmo no redomoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos -lixo de estrelas e de almas - será varrido para fora da casa, para que o que há recomece."

Resto 186*/a

" Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciava o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.
Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há un resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo."

Resto 185*

" O despertar de uma cidade, seja entre névoa ou de outro modo, é sempre para mim uma coisa mais enternecedora do que o raiar da aurora sobre os campos. Renasce muito mais, há muito mais que esperar, quando, em vez de só dourar, primeiro de luz obscura, depois de luz húmida, mais tarde de outro luminoso, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas das mãos das folhas, o sol multiplica os seus possíveis efeitos nas janelas, nos muros nos telhados - nas janelas tantos, nos muros cores diferentes, nos telhados tons vários - grande manhã diversa tantas realidades diversas. Uma aurora no campo faz-me bem; uma aurora  na cidade bem e mal, e por isso me faz mais que bem. Sim, porque a esperança maior que me traz tem, como todas as esperanças, aquele  travo longínquo e saudoso de não ser realidade. A manhã do campo existe; e amanhã existe; e manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar. E eu hei sempre de sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver."

Resto 184

"A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto. Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epilépticos são, na crise, fortíssimos; os paranóicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura.
Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheias de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada. 
Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. O sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia me não abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida."

Resto 183

"...tudo isto eu gozo a meu modo, indiferentemente. Porque um dos detalhes característicos da minha atitude espiritual é que a atenção não deve ser cultivada, exageradamente, e mesmo o sonho deve ser olhado alto, com uma consciência aristocrática de o estar fazendo existir. Dar demasiada importância ao sonho seria dar demasiada importância, afinal, a uma coisa que se separou de nós próprios, que se ergueu, conforme pôde, em realidade, e que, por isso, perdeu o direito absoluto à nossa delicadeza para com ela."

Resto 182*/c

" Então, na praia rumorosa só das ondas próprias, ou do vento que passava alto, como um grande avião inexistente, entregava-me a uma nova espécie de sonhos - coisas informes e suaves, maravilha da impressão profunda, sem imagens, sem emoções, limpas como o céu e as águas, e soando, como as volutas desenredando-se do mar alçante do fundo de uma grande verdade; tremulamente de um azul oblíquo ao longe, esverdeando na chegada com transparência de outros tons verdes-sujos, e, depois de quebrar, chiando, os mil braços desfeitos, e os desanlongar em areia amorenada e espuma desbabada, congregando em si todas as ressacas, os regressos à liberdade da origem, as saudades divinas, as memórias, como esta que informemente me não doía, de um estado anterior, ou feliz por bom ou por outro, um corpo de saudade com alma de espuma, o repouso, a morte, o tudo ou nada que cerca como um grande mar a ilha de náufragos que é a vida.
E eu dormia sem sono, desviado já do que via a sentir, crepúsculo de mim mesmo, som de água entre árvores, calma dos grandes rios, frescura das tardes tristes, lento arfar do peito branco do sono de infância da contemplação."

Resto 182/b

" Certos modos e feições da minha vida quotidiana representados - no meu ser constante por desejos, repugnâncias, preocupações - sumiam-se de mim como emboscados da ronda, apagavam-se nas sombras até senão perceber, o que eram, e eu atingia um estado de distância íntima em que se me tornava dificil lembrar-me de ontem, ou conhecer como meu o ser que em mim está vivo todos os dias. As minhas emoções de constantemente, os meus hábitos regularmente irregulares, as minhas falas com outros, as minhas adaptações à constituição social do mundo - tudo isto me pareciam coisas lidas algures..."

Resto 182*/a

" ...Descia-se para a praia por uma escada tosca, que começava, em cima, em escada de madeira, e a meio se tornava em recorte de degraus na rocha, com corrimão de ferro ferrugento. E, sempre que eu descia a escada velha, e sobretudo da pedra aos pés para baixo, saía da minha própria existência, encontrando-me.
Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com a parte da memória, um momento, ou um aspecto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e do começo das coisas,sente, em certo modo, uma infância e uma libertação.
Dir-se-ia que, descendo aquela escada pouco usada agora, e entrando lentamente na praia pequena sempre deserta, eu empregava um processo mágico para me encontrar mais próximo da mónada possivel que sou..."

Resto 181

" Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminhos-de-ferro onde gastei duas horas à espera do comboio - sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos naquele preciso e exacto momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me pela face lívida.
O tempo! O passado! Aí algo,uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta em minha alma o pano de boca das minhas recordações...Aquilo que fui nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco,toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas."

Resto 180/b

" Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que correspondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquela a que se abraçam em visão - tudo isto pesa como uma condenação dada não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isto é concerteza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anónimo de todos os sentimentos. Tudo isto está dito em outra linguagem, para nós incompreensivel, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisa nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias - está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma - como única realidade deste momento - há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro."

Resto 180*/a

" Os sentimentos que mais me doem, as emoções que mais me pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, tristes de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.
Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são reminiscências de qualquer outro mundo em que houvessemos estado - reminiscências cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos mas não na origem se a soubéssemos. Não sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que deles somos, de uma maneira incompleta - perdida a solidez e nós figurando-no-la mas nas só duas dimensões da sombra que vivemos."

Resto 179

" As civilizações parece não exitirem senão para produzir arte e litratura; é, palavras, o que delas falas e ficas. Porque não serão essas figuras extra-humanas verdadeiramente reais? Dói-me mal na existência mental pensar que isto possa ser assim..."

Resto 178/d

" Sou uma espécie de carta de jogar, de naipe antigo e incógnito,restando única do baralho perdido. Não tenho sentido, não sei do meu valor, não tenho a que me compare para que me encontre, não sei do meu valor, não tenho a que sirva para que me conheça. E assim, em imagens sucessivas em que me descrevo - não sem verdade, mas com mentiras -, vou ficando mais nas imagens do que em mim, dizendo-me até não ser, escrevendo com a alma como tinta, útil para mais nada do que para se escrever com ela. Mas cessa a reacção, e de novo me resigno. Volto a mim ao que sou, ainda que seja nada. E alguma coisa de lágrimas sem choro arde nos meus olhos hirtos, alguma coisa de angústia que não houve me empola asperamente a garganta seca. Mas aí, nem sei o que chorara, se houvesse chorado, nem porque foi que o não chorei. A ficção acompanha-me, como a minha sombra. E o que quero é dormir." 

Resto 178/C

" Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatisfação sossegada,me não sobe pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vácuo e do tédio de pensar assim" Quantas vezes não me sinto, como quem ouve falar através de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta vida estranha à vida humana - vida em que nada se passa salvo na consciência dela! Quantas vezes, despertando de mim, não entrevejo, do exílio que sou, quanto fora melhor ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a amargura real, o contente que tem cansaço em vez de tédio, que sofre em vez de supor que sofre, que se mata, sim em vez de se morrer!
Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me, detruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda;vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro e negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo."

Resto 178/b

Tem-me perseguido, como um ente maligno, o destino de não poder desejar sem saber que terei que não ter. Se um momento vejo na rua um vulto núbil de rapariga, e, indiferentemente que seja, tenho um momento de supor o que seria se ele fosse meu, é sempre certo que, a dez passos do meu sonho, aquela rapariga encontra o homem que vejo que é o marido ou o amante. Um romântico faria disto uma tragédia; um estranho sentiria isto como uma comédia:eu,porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia.
Uns dizem que sem esperança a vida é impossível, outros que com esperança é vazia. Para mim, que hoje não espero nem desespero, ela é um simples quadro externo, que me inclui a mim, e a que assisto como um espectáculo sem enredo, feito só para divertir os olhos - bailando sem nexo,mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do sol muda de cores, arruamentos antigos, ao acaso, em pontos desconformes da cidade. Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal..."

Resto 178/a

" Tenho assistido,incógnito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao soçobro lento de tudo quanto quis ser. Posso dizer, como aquela verdade que não precisa de flores para saber que está morta, que não há coisa que eu tenha querido, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o sonho só desse momento,que se me não tenha desfeito debaixo das janelas como pó parecendo pedra caído de um vaso de andar alto. Parece, até, que o Destino tem sempre procurado, primeiro, fazer-me amar ou querer aqui-lo que ele mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não tinha ou teria.
Espectador irónico de mim mesmo, nunca, porém,desanimei de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por antecipação de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida, sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança, como um amargo com doce que torna o doce doce contra o amargo. Sou um estratégico sombrio, que, tendo perdido todas as batalhas, traça já, no papel dos seus planos, gozando-lhe o esquema, os pormenores da sua retirada fatal, na véspera de cada sua nova batalha."

Resto 177*

" Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve fresco morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pesou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.
Concebo que sejamos clima, sobre que pairam ameaças de tormentas, noutro ponto realizadas.
A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra..."

Resto 176*/b

" Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca de mais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflecte-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra. Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me conhecesse...Cai leve, o fim do dia certo, em que os que crêem e erram se engrenam no trabalho do costume, e têm, na sua própria dor, a felicidade da incosciência...Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor."

Resto 176/a

" Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me "compreenda", os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nacer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor,como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro.
Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver."

Resto 175

" Qualquer deslocamento das horas usuais traz sempre ao espírito uma novidade fria, um prazer levemente desconfortante. Quem tem o hábito de sair do escritório às seis horas, e por acaso saia às cinco, tem desde lgo um feriado mental e uma coisa que parece pena de não saber o que fazer de si.
Ontem, por ter que tratar longe, saí do escritório às quatro horas...Não costumo estar nas ruas àquela hora, e por isso estava numa cidade diferente. O tom lento da luz nas frontarias ususais era de uma doçura improfícua, e os transeuntes de sempre passavam por mim numa cidade ao lado, marinheiros desembarcados da esquadra de ontem à noite...
...Então de volta? Sim, de volta. Estava ali então livre de sentir, sozinho com os que me acompanhavam sem que espiritualmente ali estivessem para mim...Era em certo modo o lar, isto é, o lugar onde não se sente."

Resto 174*

" O ar é de um amarelo escondido, como um amarelo pálido visto através de um branco sujo. Mal hé amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento, porém, tem um amarelo na sua tristeza."

Resto 173

" O homem vulgar,por mais dura que lhe seja a vida,tem ao menos a felicidade de não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão...Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir a mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da acção, não agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para não serem guilhotinados no dia seguinte."

Resto 172/c

" Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: "Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma" Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma...e assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida..., absurda como um relógio público parado.
Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente que forma no seu conjunto o meu previlégio de penumbra."

Resto 172/b

" Sim, vejo nitidamente, com clareza com que os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objectos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira ... este escritório...este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto...esta repetição pegada das mesmas prsonagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...
Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.
E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono,na figura da morte com que resonam,na calma com que parecem vegetais progredidos!
Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!

Resto 172/a

" A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais o mais intenso e o mais constante do sonho.
Sou como um escravo que se embebeda à sesta - duas misérias em um corpo só."

Resto 171

" Esta hora horrorosa que ou decresça para possível ou cresça para mortal.
Que a manhã nunca raie, e que eu e esta alcova toda, e a sua atmosfera interior a que pertenço, tudo se esperitualize em Noite, se absolute em Treva e nem fique de mim uma sombra que manche da minha memória o que quer que seja que não morra."

Resto 170/b

"É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisas haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios.
Contudo que saudade do futuro, se deixo os olhos receber a saudação morta do dia iluminado que finda! Que grande enterro de esperança vai pela calada doirada ainda dos céus inertes, que cortejo de vácuos e nadas se espalha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do espaço alvar!
Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordináriamente se conhece que estamos qurendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que sou. Como alguém suterrado sobre um muro que se desmorenasse, jazo sobre a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa,pelo começo da minha impaciência de mim.
Ah, e a lua alta e maior destas noites plácidas, mornas de angústia e desassossego! A paz sinistra da beleza celeste, ironia fria do ar quente, azul negro enevoado de luar e tímido de estrelas."

Resto 170*/a

" Antes que estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o ar pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de gloríola falsa. São comparáveis àqueles artifícios da imaginação em que as saudades são de nada, e se prolonga, indefinidas como rastos de navios formando a mesma cobra sucessiva.
Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior que o tédio mas a que não compete outro nome senão o tédio - um sentimento de desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus complacente,que a Substância de tudo morreu. E o universo sensível é para mim um cadáver que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nuvens coloridas.
O meu tédio assume aspectos de horror;o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos poros do corpo e o inunda a ele também."

Resto 169*

" Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens escuras e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida. Dos lados a que chamamos da barra, sucessivas e torvas, essas nuvens sobrepunham-se, e uma antecipação de tragédia estendia-se com elas do indefinido rancor das ruas contra o sol alterado.
Era meio-dia e já na saída para o almoço, pesava uma esperança má na atmosfera empalecida. Farrapos de nuvens esfarrapadas na dianteira dela. O céu, para os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul. Havia sol mas não apetecia gozá-lo.
À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao escritório, parecia mais limpo o céu, mas só para o lado antigo. Sobre os lados da barra estava de facto mais descoberto. De sobre a parte norte da cidade,porém,as nuvens conjugavam-se lentamente numa nuvem só - negra, implacável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros. Dentro de pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com o esperá-la. Era, ou parecia, um pouco mais límpido o céu para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado. Suava-se na sombra da sala grande do escritório. «Vem aí uma grande trovoada», disse o Moreira, e voltou a página da Razão."

Resto 168

" Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me pareceu deleitosa. Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação extrema e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita.. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil. Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisa externa. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.
Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é i-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimento.
A mínima acção é-me dolorosa como uma herocidade. o mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
"Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.
O ideal era não ter mais acção do que a acção falsa de um repuxo - subir para cair no mesmo sítio, brilhar ao sol sem utilidade nenhuma e fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente."

Resto 167*

" Nas vagas sombras de luz por findar antes que a tarde seja noite cedo,gozo de errar sem pensar entre o que a cidade se torna, e ando como se nada tivesse remédio. Agrada-me, mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa que está comigo. Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro de texto intersperso de imagens rápidas, de que vou formando indolentemente uma ideia que nunca se completa.
Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua sem ter visto tudo. Assim tiro do livro que se me folheia na alma uma história vaga por contar, memórias de um outro vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou luares, com áleas de parques no meio, e figuras de seda várias, a passar, a passar.
Indiscriminando a tédio e outro. Sigo, simultaneamente, pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada, e os caminhos são verdadeiramente percorridos. Emigro e repouso, como se estivesse a bordo com o navio já no mar alto.
Súbitos, os candeeiros mortos coincidem luzes pelos prolongamentos duplos da rua longa e curva. Como um baque a minha tristeza aumenta. É que o livro acabou. Há só, nas viscosidade aérea da rua abstracta, um fio externo de sentimento, como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a consciência da alma.
Outra vida, a da cidade que anoitece. Outra alma, a de quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico, irrealmente sentiente. Sou como uma história que alguém houvesse contado, e, de tão bem contada, andasse carnal mas não muito neste mundo romance, no princípio de um capítulo:
« A essa hora um homem podia ser visto seguir lentamente pela rua de... »
Que tenho eu com a vida?"

Resto 166

" Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente segura, possa livremente escrever e publicar, sei que terei saudades desta vida incerta, em que mal escrevo...Terei saudades, não só porque essa vida fruste é passado e vida que não mais terei, mas porque hé em cada espécie de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e quando se passa para outra vida, ainda que melhor, esse prazer peculiar é menos feliz, essa qualidade própria é menos boa, deixam de existir, e há uma falta.
Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom calvário a cruz da minha intenção, encontrarei um calvário nesse bom calvário, e terei saudades de quando era fútil, fruste e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira...Quase peço aos deuses que haja que me guardem aqui, como num cofre, defendendo-me das agruras e também das felicidades da vida."

Resto 165

" Cada um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa cair...O mais alto de nós não é mais que um conhecedor mais próximo do oco e do incerto de tudo.Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia."

Resto 164/b

" Nunca encontrar Deus, nunca saber,sequer, se Deus existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre o erro que afaga.
A verdade nunca, a paragem nunca! A união com Deus nunca! Nunca inteiramente em paz, mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!"

Resto 164/a

" Somos morte. isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.
Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
Tudo aquilo que em nossas actividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo, tallhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.
O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida, que não tenhamos, nisso,um dia a menos nela.
Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideias e filosofias."

Resto 163

" Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nacemos, não tivesse sugurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego politico. Ébrias  das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã,porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os envangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagen da "ciência" primitiva dos envangelhos; ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafisica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram "positividade", essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver,e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza de nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemnte, ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordámos para um mundo ávido de novidades sociais, e com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definiria.
Mas o criticismo fruste dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentamente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do pasado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento nun manocónimo:a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação."

Resto 162*

" Depois de uma noite mal dormida, toda a gente não gosta de nós. O sono ido levou consigo qualquer coisa que nos tornava humanos. Há uma irritação latente connosco, parece, no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós, afinal, que nos desapoiámos, e é entre nós e nós que se fere a diplomacia da batalha surda.
Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço. Tenho a alma
reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui, que sou eu, esqueceu-se de seu nome. Se tenho amanhã, não sei senão que não dormi, e a confusão de vários intervalos põe grandes silêncios na minha fala interna.
Ah, grandes parques dos outros, jardins usuais para tantos, maravilhosas áleas dos que nunca me conhecerão! Estagno entre vigílias, como quem nunca ousou ser supérfluo, e o que medito estremunha-se com[o] um sonho ao fim. Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombreada de espectros timidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado, ou estão eles, e há grandes ruídos de árvores em meu torno. Divago e encontro; encontro porque divago. Meus dias de criança vestidos vós mesmos de bibe!
E, em meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco da minha
vagabundagem folha. Qualquer vento lento me varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca fechada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o meu deambular.
Sim, não dormi, mas estou mais certo assim, quando nunca dormi nem
durmo. Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e simbólica do estado de meia-alma em que me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me conhecesse e me estranhasse. Sinto que os olho também com órbitas sentidas sob pálpebras que as roçam, e não quero saber de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!"

Resto 161

" A ladeira leva ao moinho, mas o esforço não leva a nada.
Ear uma tarde de primeiro outono, quando o céu tem um calor frio morto, e há nuvens que abafam a luz em cobertores de lentidão.
Duas coisas só me deu o Destino: uns livros de contabilidade e o dom de sonhar."

Resto 160/c

"Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar?...Posso imaginar tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidades não o deixa sentir."

Resto 160/b

"Sábio, é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem o privilégio da maravilha. Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetada na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a Terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade...Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espectáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.
Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção"

Resto 160/a

" Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.
A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro,e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vida são a destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu - palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou nem sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem há razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.
E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros - os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.
Revejo com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, infelizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao génio, apenas, o ser mais alguns outros."

Resto 158/b

" Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer.Desdiz não so da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser, senão à regra que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre reclusa, vivendo sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da minha prosa, no momento alado em que ela me nascia, mais rápida que os movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos da vida!"

Resto 158/a

" Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera que eu o não houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto, porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que o releio. O que me dói é que não veleu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscamo-lo por uma ambição, mas essa ambição ou não se atinge, e somo pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos loucos ricos."

Resto 157

" ...E eu, que odeio a vida com timidez, temo a morte com fascinação. Tenho medo desse nada que pode ser outra coisa, e tenho medo dele simultaneamente como nada e outra coisa qualquer, como se nele se pudessem reunir o nulo e o horrivel, como se no caixão me fechassem a respiração eterna da alma, corpórea, como se ali triturassem de clausura o imortal. A ideia do inferno, que só uma alma satânica poderia ter inventado, parece-me derivar-se de uma confusão desta maneira - ser a mistura de dois medos diferentes, que se contradizem e malignam."

Resto 156/b

"A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade - que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a - é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou a caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo?...Tudo o que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da carne e da vida,e, baba da grande Aranha, nos liga sutilmente ao que está perto, enenleando-nos num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento.Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada? Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa que se ergue, o silêncio que se segue quando ela cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre elas que falam , e depois a noite onde emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrela."

Resto 156/a

" Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade - a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisa destacada e arestas diferentes diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.
O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir - não para as Índias impossívies, ou para as grande ilhas ao sul de tudo, mas para o lugar qualquer - aldeia ou ermo- que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar com a vida, e n4ao como repouso. Uma cabana beira-mar...infelizmente..."

Resto 155/b

" Estou quase místico, como eles, ao falar deles, mas seria incapaz de ser mais que estas palavras escritas ao sabor da minha inclinação ocasional. Serei sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira. Serei sempre em verso ou prosa, empregado de carteira. Serei sempre no místico ou não-místico, local e submisso, servo das minhas sensações e da hora em que as ter. Serei sempre, sob o grande pálido azul do céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, executando, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir comer coisa de gala nas grandes barracas que estão, dizem, lé em baixo ao fundo do jardim."

Resto 155/a

" Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançamentos inconscientes através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao sol e dorme ali. O homem espoja- se à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta da lei fatal de ser como é. Nenhum tenta levantar o peso de ser. Os maiores dos homens amam a glória, mas amam-na, não como a uma imortalidade própria, senão como a uma imortalidade abstracta, de que porventura não participam."

Resto 154

" Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que não o seja, não mais que cenário e decoração. Um homem, ainda que eu possa reconhecer pelo pensamento que ele é um ente vivo como eu, teve sempre, para o que em mim, por me ser involuntário, é verdadeiramente eu, menos importância que uma árvore, se a árvore é mais bela. Por isso senti sempre os movimentos humanos - as grandes tragédias colectivas da história ou do que dela fazem - como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam neles. Nunca me pesou o que de trágico passou na China.
É decoração longinqua, ainda que a sangue e a peste."

Resto 153

" A inacção consola de tudo. Não agir dá-nos tudo. Imaginar é tudo, desde que não tenda para agir. Ninguém pode ser rei do mundo senão em sonho. E cada um de nós, se deveras se conhece, quer ser rei do mundo.
Não ser, pensando, é o trono. Não querer, desejando, é a coroa. Temos o que abdicamos, porque o conservamos sonhando, intacto, eternamente à luz do sol que não há, ou da lua que não pode haver."

Resto 152

" Os homens de acção são os escravos involuntários dos homens de entendimento. As coisas não valem senão na interpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros, transmudando-as em significação, as tornem vidas. Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido."

Resto 151

" Tudo quanto desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das virtudes  - deve ser considerado como meros acidentes externos,impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que sofrer a nossa existência orgâncica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos , pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo...Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque sejamos justos, mas porque somo nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruem sobre o que para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos."

Resto 150*

" O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal desses termos lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra coisa.
Se alguma coisa odeio, é o reformador. Um reformador é um homem que vê os males superficiais do mundo e se propõe curá-los agravando os fundamentais. O médico tenta adaptar o corpo doente ao corpo são; mas nós não sabemos o que é são ou doente na vida social...Não distingo fundamentalmente, um homem de uma árvore;e, por certo, prefiro o que mais decore, o que mais interesse os meus olhos pensantes. Se a árvore me interessa mais, pesa-me mais que cortem a árvore do que o homem morra. Há idas de poente que me doem mais que mortes de crianças. Em tudo sou o que não sente,para que sinta.
Quase me culpo de estar escrevendo estas meias reflexões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-se, uma brisa ligeira. Colorindi-se não, que não é ela que se colora, mas o ar em que bóia incerta; mas como me parece que é ela mesma que se colora, é isso que digo, pois hei-depor força dizer o que me parece, visto que sou eu."

Resto 149/c

" Revolução? Mudança? O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver começar a surgir de entre elas verdade certa e clara porque nada é nem quer."

Resto 149/b

" O homem de sensibilidade justa e recta razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto se manifesta; e encontrará isso em seu próprio ser. Levar-lhe-á essa obra toda a vida.
Tudo para nós está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós. Aquela justiça íntima pela qual escrevemos uma página fluente e bela, aquela reformação verdadeira, pela qual tornamos viva a nossa sensibilidade morta - essas coisas são a verdade, a nossa verdade, a única verdade. O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos. E é-o quer que seja a paisagem colorida das coisas e dos seres - os campos, as casas, os cartazes e os trajos - quer seja a paisagem incolor das almas monótonas, subindo um momento à superfície em palavras velhas e gestos gastos, descendo outra vez ao fundo na estupidez fundamental da expressão humana."

Resto 149/a

" Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução...Dói-me a inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana.. Depois todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incómodo, o são todos os reformadores.
Revolucionário ou reformador - o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador é um evadido. Combater é não ser-se capa de combater-se. Reformar é não ter emenda possível."

Resto 148/b

" São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias da nossa alma... Em toda a alma que sente chega o dia em que o Destino nela representa um apócalipse de agústia - um entornar dos céus e dos mundos todos sobre a sua desconsolação.
Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos - quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação?
Se um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono.Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro..."

Resto 148/a

" Do alto de hoje, olhando para trás, para esse passado, que já não sei designar nem como longínquo nem como recente...Não foi nada, salvo o que passei comigo.No aspecto externo do assunto íntimo, legiões humanas de homens têm pasado pelas mesmas torturas.
Cedo de mais obtive, por uma experiência, simultânea e conjunta, da sensibilidade e da inteligência, a noção de que a vida da imaginação, por mórbida que pareça, é contudo aquela que calha aos temperamentos como é o meu. As ficções da minha imaginação (posterior) podem cansar, mas não doem nem humilham. Às amantes impossíveis é também impossível o sorriso falso..."

Resto 147

" Amei, como Shelley, a Antígona antes que o tempo fosse: todo amor temporal não teve para mim outro gosto senão o de lembrar o que perdi."

Resto 146/c

" Poder sonhar o inconcebível visibilizando-o é um dos grande triunfos que não eu, que sou grande, senão raras vezes atinjo. Sim, sonhar que sou por exemplo, simultaneamente, separadamente, inconfusamente, o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher dão à beira-rio. Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem misturar, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul e uma página impressa dum livro antiguo. Que absurdo que isto parace! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos."

Resto 146/b

" Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto...Tenho escrito frases cujo o som, lidas alto ou baixo - é impossivel ocultar-lhes o som - é absolutamnte o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente.
Por que exponho eu de vez em quando processos contraditórios e inconciliáveis de sonhar e de aprender a sonhar? Porque, provavelmente, tanto me habituei a sentir o falso como o verdadeiro, o sonhado tão nitidamente como o visto, que perdi a distinção humana, falsa, creio, entre a verdade e a mentira.
Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real. Pode ser mesmo que eu sinta duas coisas inconjugáveis ao mesmo tempo. Não importa."

Resto 146/a

"Criar dentro de mim um Estado com uma política, com partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no panteísmo real desse povo-eu, essência e acção dos seus corpos, das suas almas, da terra que pisam e dos actos que fazem. Ser tudo, ser eles e não eles. Ai de mim! este ainda é um dos sonhos que não logro realizar. Se o realizasse morreria talvez, não sei porquê, mas não se deve poder viver depois disso, tamanho o sacrilégio cometido contra Deus, tamanha usurpação do poder divino de ser tudo."

Resto 145

" Que rainha imperiosa guarda ao pé dos seus lagos a memória da minha vida partida? Fui pajem da alamedas insuficientes às horas aves do meu sossego azul. Naus ao longe completaram o mar a ondear dos meus terraços, e nas nuvens do sul perdi minha alma, como um remo deixado cair."

Resto 144/c

"...eu, que desperto numa encruzilhada, não sabia de onde viera...vi que estava vestido de pajem...vi que tinha nas mão as mensagem que entregar..o papel estava branco, riram-se de mim...porque todos os papéis estão brancos, ou porque todas as mensagens se adivinham.
Por fim sentei-me na pedra da encruzilhada como à lareira que me faltou. E comecei, a sós comigo, a fazer barcos de papel com a mentira que me haviam dado. Ninguém me quiz acreditar, nem por mentiroso, e não tinha lago com que provasse a minha verdade.
Palavras ociosas, perdidas, metáforas soltas, que uma vaga angústia encadeia a sombras...Saudade dos tanques das quintas alheias...Ternura do nunca sucedido..."

Resto 144/b

" E uns e outros, nestes momentos, amam o sono, como o homem vulgar que nem age nem não age, mero reflexo da existência genérica da espécie humana. Sono é fusão com Deus, o Nirvana, seja ele em definições o que for; sono é a análise lenta das sensações, seja ela usada como uma ciência atómica da alma, seja ela dormida como uma música da vontade, anagrama lento da monotonia. 
Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios sentidos, quase expressões o que me fica...escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."

Resto 144/a

" O devaneio, em que naturalmente se perde quem não pensa, perco-me eu nele por escrito, pois sei sonhar em prosa. E há muito sentimento sincero, muita emoção legítima que tiro de não estar sentindo.
Há momentos em que a vacuidade de se sentir viver atinge a espessura de uma coisa positiva. Nos grandes homens de acção, que são os santos, pois que agem com a emoção inteira e não só com parte dela, este sentimento de a vida não ser nada conduz ao infinito. Engrinaldam-se de noite e de astros, ungem-se de silêncio e de solidão. Nos grandes homens de inacção, a cujo número humildemente pertenço, o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal; puxam-se as sensações, como elásticos, para ver os poros da sua falsa continuidade bamba."

Resto 143

" Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.
O meu coração esvazia-se sem querer, como um balde roto. Pensar Sentir?Como tudo cansa se é uma coisa definida! "

Resto 141/b

" A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta aberta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever.Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de àrvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios inferiores da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar."

Resto 141/a

" Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me a acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia"

Resto 138

" A persistência instintiva da vida através da aparência da inteligência é para mim uma das contemplações mais íntimas e mais constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar aquela inconsciência que não disfarça.
Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos, são todos inconscientes - não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências.
Vislumbres de ter ilusão - tanto, e não mais, tem o maior dos homens.
Sigo, num pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se chocam como pouca coisa."

Resto 137/d

" Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar.
Ergo-me da cadeira de onde, fincando distraidamente contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impressões irregulares. Ergo-me, ergo o corpo nele mesmo, e vou até à janela, alta acima dos telhados, de onde posso ver a cidade ir a dormir num começo lento de silêncio. A lua, grande e de um branco branco, elucida tristemente as diferenças socalcadas da casaria. E o luar parece iluminar algidamente todo o mistério do mundo.Parece mostrar tudo, e tudo é sombras com misturas de luz má, intervalos falsos, desniveladamente absurdos, incoerências do visível. Não há brisa e parece que o mistério é maior.Tenho náuseas no pensamento abstracto.Nunca escreverei uma página que me revele ou que revele alguma coisa. Uma nuvem leve paira vaga acima da lua, como um esconderijo.Ignoro como estes telhados.Falhei, como a natureza."

Resto 137/c

" Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse «Conhece-te» propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscientemente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão."

Resto 137/b

" O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse « nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmáticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que dúvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária suprefície da Terra."