Resto/479b

"Ele mobilara - é impossível que não fosse à custa de algumas  coisas essenciais - com um certo e aproximado luxo os seus dois quartos.Cuidara especialmente das cadeiras-de braços, fundas,moles  -,dos reposteiros e dos tapetes.Dizia ele que assim  se criara um  interior "para manter a dignidade do tédio". No quarto à moderna o tédio torna-se desconforto, mágoa física.Nada o obrigara nunca a fazer nada.Em criança passara isoladamente.
Aconteceu que nunca passou por nenhum agrupamento. Nunca  frequentara um curso.Não pertencera nunca a uma multidão.Dera-se com ele o curioso fenómeno que com tantos - quem sabe, vendo bem, se com todos? - se dá, de as circunstâncias ocasionais da sua vida se terem talhado à imagem e semelhança da direcção dos seus instintos,de inércia todos, e de afastamento.
Nunca teve de se defrontar com as exigências do estado ou da  sociedade. Às próprias exigências dos seus instintos ele se furtou. Nada o aproximou nunca nem de amigos nem de amantes. Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas - apesar de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por amigo - percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio  isto me doesse, quando o notei, por fim vendo tudo através do único critério digno de um psicólogo,  fiquei do mesmo modo  amigo  dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si -a publicação deste seu livro.
Até nisto - é curioso descobri-lo - as circunstâncias, pondo ante ele quem, do meu carácter, lhe pudesse servir, lhe foram favoráveis."