Resto 309*

" Na minha alma ignóbil e profunda registo, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado.
Há quem estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa madorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.
Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.
Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias do meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e não só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorta negro contra o céu azul escuro esbranquiçado a amarelo leite.
Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cair, como um episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma.  Rola para debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim."