"A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma!...
Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de dar passos não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro."*Despojo/115
"O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal desses termos lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra coisa."*
Despojo/114
"Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil."*
Despojo/113
"Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado."*
Despojo/112
" Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato."*
Desojo/111
"Só eles sabem que nós somos presa da ilusão que nos criaram. Mas qual a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram - isso, por certo, eles mesmos não sabem."*
Despojo/110
"Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser natural, e é o natural que é estranho.Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente.A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade."*
Despojo/109
"Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreender-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende."*
Despojo/108
"Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando-a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo."*
Despojo/106
"A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra. Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los."*
Despojo/105
“Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir. Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão."*
Despojo/104
"Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço."*
Despojo/103
"A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total."*
Despojo/102
"Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte."*
Despojo/101
"Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a cobardia; é entregarmo-nos totalmente à vida."*
Despojo/100
"...Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer."*
Despojo/099
"Escuto-me sonhar. Embalo-me com o som das minhas imagens... Soletra-se-me em recônditas melodias(...)
O som duma frase imageada vale tantos gestos! Uma metáfora consola de tantas coisas!Escuto-me... São cerimoniais em mim... Cortejos... Lantejoulas no meu tédio... Bailes de máscaras...Assisto à minha alma com deslumbramento..."*
Despojo/098
"Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro."*
Despojo/097
"Não sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento."*
Despojo/096
"Um dia...
Em vez de almoçar – necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim...
Viver não vale a pena."*
Despojo/095
"Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar pararia."*Despojo/094
"Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros."*
Despojo/092
"Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever."*
Despojo/091
"E por detrás da derrota surge a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado "*
Despojo/090
"O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço."*
Despojo/089
"Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação."*
Despojo/088
"Os verbos! Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costuma dizer-me que procurava o micróbio da significação...Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si...Um revólver e..."*
Despojo/087
"Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo."*
Despojo/086
" Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima directamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível."*
Despojo/085
" E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser..."*
Despojo/084
" Somos morte. isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos."*
Despojo/083
" Os dias de sol sabem-me ao que eu tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta - éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos...Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos."*
Despojo/082
"Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração."*
Despojo/081
"Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os teve; alguns alcançam a memória da civilização que os possuiu; raros abrangem, de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes."*
Despojo/080
"Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida."*
Despojo/079
"A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exactidão inscrita num livro irónico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras."*
Despojo/078
"Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida."*
Despojo/077
"A vasta rede de inconsciências que é toda a acção que eu vejo parece-me uma ilusão absurda, sem coerência plausível, nada."*
Despojo/076
"Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão."*
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Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim."
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E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,...- eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria."
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Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho."
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Despojo/006
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Despojo/004
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Despojo/003
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Despojo/002
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Despojo/ 001
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Refugo/034
Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes...Eu nunca tive noiva real...Nunca soube como se amava...Apenas soube como se sonhava amar...Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha...Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia...Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando.
Refugo/033
Não sei onde te vi nem quando. Não sei se foi num quadro ou se foi no campo real, ao pé de árvores e ervas contemporâneas do corpo; foi num quadro talvez, tão idílica e legível é a memória que de ti conservo. Nem sei quando isto(se) passou, ou se se passou realmente - porque pode ser que nem em quadro eu te visse -, mas sei com todo o sentimento da minha inteligência que esse foi o momento mais calmo da minha vida.
Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi manso e enorme, calmos pelo risco largo da estrada. Desde longe - parece-me - eu os vi, e viestes até mim e passastes. Pareceste não reparar na minha presença. Ias lenta e guardadora descuidada do boi grande. O teu olhar esquecera-se de lembrar e tinha uma grande clareira de vida de alma; abandonara-te a consciência de ti própria. Nesse momento nada mais eras do que um(...)
Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os campos são eternos.
Chamam bíblicas às pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos bíblicos deviam ter sido.
É no recorte passageiro da tua figura anónima que eu ponho toda a evocação dos campos, e a calma toda que eu nunca tive chega-me à alma quando penso em ti. O teu andar tinha um balouçar leve, um ondular incerto, em cada gesto teu pousava uma ave tinhas trepadeiras invisíveis enroscadas no do teu busto. O teu silêncio - era o cair da tarde, e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas encostas pálidas da hora - o teu silêncio era o canto do último pegureiro que, por esquecido de uma écloga nunca escrita de Virgílio, ficou eternamente encantado, e eterna nos campos, silhueta. Era possível que estivesses sorrindo; para ti apenas, para a tua alma, vendo-te a ti na tua ideia, a
sorrir. Mas os teus lábios eram calmos como o recorte dos montes; e o gesto, que deslembro, de tuas mãos rústicas engrinaldado com flores do campo.
Foi num quadro, sim, que te vi. Mas donde me vem esta ideia de que te vi aproximares-te e passares por mim e eu seguir, não me voltando para trás por te estar vendo sempre e ainda? Estaca o Tempo para te deixar passar, e eu erro-te quando te quero colocar na vida - ou na semelhança da vida."
Refugo/032
Dominámos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.”
Refugo/031
Tanto os tambores, os tambores atroaram a trémula hora.”
Refugo/030
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.”
Refugo/029
Refugo/028
Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver - tudo irresponsavelmente.
Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo, deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (à vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais.
Milénios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis - não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor - tudo morto, minha ama, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado... Dáme que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem...”
Refugo/027
O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.
Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.
Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.
Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder.
Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.”
Refugo/026
Refugo/025
Refugo/024
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.
Meu destino é a decadência.
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas."
Refugo/023
Refugo/022
Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me."
Refugo/021
Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais."