"Quando vim para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas...Descubro hoje que, por processo de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco, onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade...Não choro a perda da infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cerebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação."