"Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiza que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.
Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstracta, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem - di-lo-ia Vieira - literais. É na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.
E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação.
São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.
Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele peculiar, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso pessoal da nossa recordação.
E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornase independente, soam, soam, soam as escalas lá em baixo, lé em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar."