" Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e ma falam, ou todos os dias ou por acaso.
Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como directamente realidades físicas;vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós.
Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que vêem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. É precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse actor prolongado do cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim."