"Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo, cheguei por fim, também, ao extremo vazio das coisas, à borda imponderável do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstracto do Mundo."*
Despojo/137
"Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal."*
Despojo/136
"A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distracções e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela."*
Despojo /134
"Haver leis para a associação de ideias, como para todas as operações do espírito, insulta a nossa indisciplina nativa."*
Despojo/133
"Que é a certeza que tem, se mais firme que ele a tem um louco no que lhe é loucura? Dizia Spencer que o que sabemos é uma esfera que, quanto mais se alarga, em tantos mais pontos tem contacto com o que não sabemos."*
Despojo/132
"Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheias de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada."*
Despojo/131
"Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para filho adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos."*
Despojo/130
"Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos,quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim."*
Despojo/128
" É na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra,ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu."*
Despojo/124
"Morte somos e morte vivemos. Mortos nascemos, mortos passamos; mortos já, entramos na Morte."*
Despojo/123
"Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objeto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real – eis o que o sábio deve procurar realizar em si próprio."*
Despojo/122
"Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela."*
Despojo/121
"A minha vida é uma febre perpétua, uma sede sempre renovada. A vida real apoquenta-me como um dia de calor. Há uma certa baixeza no modo como apoquenta."*
Despojo/120
"As circunstâncias da minha vida, desde criança sozinho e calmo, outras forças talvez, amoldando-me, de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios."*
Despojo/119
"Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito - como através dele compreender? Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro."*
Despojo/118
"Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afectam-me como um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir sentir-los."*
Despojo/117
"Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. Faz o teu dever de mera taça.
Cumpre o teu mister de ânfora inútil. Ninguém diga de ti o que a alma do rio pode dizer das margens, que existem para o limitar. Antes não correr na vida, antes secar de sonhar."*Despojo/116
"A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma!...
Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de dar passos não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro."*Despojo/115
"O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal desses termos lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra coisa."*
Despojo/114
"Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil."*
Despojo/113
"Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado."*
Despojo/112
" Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato."*
Desojo/111
"Só eles sabem que nós somos presa da ilusão que nos criaram. Mas qual a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram - isso, por certo, eles mesmos não sabem."*
Despojo/110
"Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser natural, e é o natural que é estranho.Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente.A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade."*
Despojo/109
"Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreender-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende."*
Despojo/108
"Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando-a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo."*
Despojo/106
"A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra. Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los."*
Despojo/105
“Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir. Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão."*
Despojo/104
"Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço."*
Despojo/103
"A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total."*
Despojo/102
"Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte."*
Despojo/101
"Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a cobardia; é entregarmo-nos totalmente à vida."*
Despojo/100
"...Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer."*
Despojo/099
"Escuto-me sonhar. Embalo-me com o som das minhas imagens... Soletra-se-me em recônditas melodias(...)
O som duma frase imageada vale tantos gestos! Uma metáfora consola de tantas coisas!Escuto-me... São cerimoniais em mim... Cortejos... Lantejoulas no meu tédio... Bailes de máscaras...Assisto à minha alma com deslumbramento..."*
Despojo/098
"Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro."*
Despojo/097
"Não sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento."*
Despojo/096
"Um dia...
Em vez de almoçar – necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim...
Viver não vale a pena."*
Despojo/095
"Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar pararia."*Despojo/094
"Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros."*
Despojo/092
"Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever."*
Despojo/091
"E por detrás da derrota surge a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado "*
Despojo/090
"O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço."*
Despojo/089
"Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação."*
Despojo/088
"Os verbos! Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costuma dizer-me que procurava o micróbio da significação...Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si...Um revólver e..."*
Despojo/087
"Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo."*
Despojo/086
" Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima directamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível."*
Despojo/085
" E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser..."*
Despojo/084
" Somos morte. isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos."*
Despojo/083
" Os dias de sol sabem-me ao que eu tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta - éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos...Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos."*
Despojo/082
"Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração."*
Despojo/081
"Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os teve; alguns alcançam a memória da civilização que os possuiu; raros abrangem, de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes."*
Despojo/080
"Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida."*
Despojo/079
"A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exactidão inscrita num livro irónico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras."*
Despojo/078
"Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida."*
Despojo/077
"A vasta rede de inconsciências que é toda a acção que eu vejo parece-me uma ilusão absurda, sem coerência plausível, nada."*
Despojo/076
"Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão."*
Despojo/075
Despojo/074
Despojo/073
Despojo/072
Despojo/070
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Despojo/069
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Despojo/068
Despojo/067
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Despojo/066
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Despojo/065
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim."
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Despojo/064
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Despojo/063
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Despojo/062
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,...- eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria."
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Despojo/061
Despojo/060
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Despojo/059
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Despojo/058
Despojo/057
Despojo/055
Despojo/054
Despojo/053
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Despojo/051
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Despojo/050
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Despojo/049
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Despojo/048
Mas nessas ocasiões, como facto impropício, sói surgir, do meu modorrar indemne, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho."
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Despojo/047
Despojo/046
Despojo/045
Despojo/044
Despojo/043
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Despojo/042
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Despojo/041
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Despojo/040
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Refugo/039
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Despojo/038
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Despojo/036
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Despojo/035
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Despojo/033
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Despojo/032
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Despojo/031
Despojo/030
Despojo/029
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Despojo/028
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Despojo/027
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Despojo/026
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Despojo/025
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Despojo/024
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Despojo/023
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Despojo/022
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Despojo/021
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Despojo/020
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Despojo/019
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Despojo/018
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Despojo/017
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Despojo/016
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Despojo/014
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Despojo/013
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Despojo/011
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Despojo/009
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Despojo/008
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Despojo/006
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Despojo/005
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Despojo/004
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Despojo/003
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Despojo/002
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Despojo/ 001
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Refugo/034
Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes...Eu nunca tive noiva real...Nunca soube como se amava...Apenas soube como se sonhava amar...Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha...Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia...Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando.
Refugo/033
Não sei onde te vi nem quando. Não sei se foi num quadro ou se foi no campo real, ao pé de árvores e ervas contemporâneas do corpo; foi num quadro talvez, tão idílica e legível é a memória que de ti conservo. Nem sei quando isto(se) passou, ou se se passou realmente - porque pode ser que nem em quadro eu te visse -, mas sei com todo o sentimento da minha inteligência que esse foi o momento mais calmo da minha vida.
Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi manso e enorme, calmos pelo risco largo da estrada. Desde longe - parece-me - eu os vi, e viestes até mim e passastes. Pareceste não reparar na minha presença. Ias lenta e guardadora descuidada do boi grande. O teu olhar esquecera-se de lembrar e tinha uma grande clareira de vida de alma; abandonara-te a consciência de ti própria. Nesse momento nada mais eras do que um(...)
Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os campos são eternos.
Chamam bíblicas às pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos bíblicos deviam ter sido.
É no recorte passageiro da tua figura anónima que eu ponho toda a evocação dos campos, e a calma toda que eu nunca tive chega-me à alma quando penso em ti. O teu andar tinha um balouçar leve, um ondular incerto, em cada gesto teu pousava uma ave tinhas trepadeiras invisíveis enroscadas no do teu busto. O teu silêncio - era o cair da tarde, e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas encostas pálidas da hora - o teu silêncio era o canto do último pegureiro que, por esquecido de uma écloga nunca escrita de Virgílio, ficou eternamente encantado, e eterna nos campos, silhueta. Era possível que estivesses sorrindo; para ti apenas, para a tua alma, vendo-te a ti na tua ideia, a
sorrir. Mas os teus lábios eram calmos como o recorte dos montes; e o gesto, que deslembro, de tuas mãos rústicas engrinaldado com flores do campo.
Foi num quadro, sim, que te vi. Mas donde me vem esta ideia de que te vi aproximares-te e passares por mim e eu seguir, não me voltando para trás por te estar vendo sempre e ainda? Estaca o Tempo para te deixar passar, e eu erro-te quando te quero colocar na vida - ou na semelhança da vida."
Refugo/032
Dominámos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.”
Refugo/031
Tanto os tambores, os tambores atroaram a trémula hora.”
Refugo/030
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.”