Resto 357/b

" Lembro-me de repente de quando era criança, e via,como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste... A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via , mas por trás do olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas, sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua apresentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a memória das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada de mim.
E debruçado ao parapeito, gozando o dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma - a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais a luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser."