" Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra - ou antes, de luz e de menos luz -, a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende - não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança - estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim me observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. (A razão também vê a aurora) A esperança que pus nele, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a que encarnei, sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, que sairei de aqui como para aqui vim - mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce, como pensar o que há-de morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas - é natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo? A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim."