" Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra - céu limpo, terra húmida e espelhenta -, a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto, e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu prório na almas, uma frescura sua nos corações.
Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súbditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmo caminhos quando chove do que quando o céu está bom. Obscuras transmutações, sentidas talvez no íntimo dos sentimentos abstractos, se operam porque chove ou deixou de chover, se sentem sem que sintam porque sem sentir o tempo se sentiu.
Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixia de si mesmo.
Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se elegra ou padece. Na vasta colónia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando o sentido diferentemente. Neste mesmo momento, em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, sou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar,sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que está pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vagamente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projecta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única - este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta do Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara."