Resto 106/b

" Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornamos literárias. As crianças são muito mais literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse,querendo dizer que estava à beira de chorar, não « Tenho vontade de chorar », que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto :«Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálperas conscientes da amargura líquida. «Tenho vontade de lágrimas!»Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral."