Resto 393/a

"(chuva)

E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É outra vez o horror de sempre – o dia, a vida, a utilidade fictícia, a actividade sem remédio. É outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas – tão longe de herméticas, meu Deus! – vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com que espreito, entre pálpebras de gato ao sol, os movimentos da lógica da minha imaginação desprendida. Vou sentindo sumirem-se-me os privilégios da penumbra, e os rios lentos sob as árvores das pestanas entrevistas, e o sussurro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos ouvidos e o vago perdurar de chuva. Vou-me perdendo até vivo.
Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar de um sono não dormido, os primeiros ruídos da vida da cidade, a subir, como uma cheia, do lugar vago, lá em baixo, onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve – pois a não ouço agora –, só o cinzento excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas sombras de uma claridade frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei qual é... São sons alegres e dispersos e doem-me no coração como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a uma execução. Cada dia, se o ouço raiar da cama onde ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento meu que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que há. E o condenado perene que há em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes."